Onda de bizarrices nas receitas de pizza incomoda os chefs tradicionais
Em São Paulo, cresce a moda de servir o prato montado em invencionices: coberturas de — pasme! — sushis, miúdos de frango, brownie etc.
“Estou de caso com minha pizza”, diz Elizabeth Gilbert, personagem de Julia Roberts no filme Comer, Rezar, Amar, de 2010, baseado em um best-seller incontornável. Depois de provar uma fatia num restaurante de Nápoles, na Itália, ela chama a atenção da amiga, que se recusa a comer por medo de engordar. Que pecado! É um erro não saboreá-la, sobretudo na cidade tida e havida como berço das pizzarias. Embora existam versões que remetam a criação da iguaria (sim, iguaria!) aos egípcios ou chineses, a versão italiana — criada em Roma, mas que ficou famosa em Nápoles — foi a que conquistou o mundo. Lá, ganhou sua forma arredondada e passou a ter o molho de tomate caseiro e adição de queijo em sua montagem. No Brasil, chegou com os imigrantes italianos que desembarcaram em São Paulo para trabalhar no cultivo de café entre o fim do século XIX e começo do século XX. Viraram paixão nacional. Hoje, 1,5 milhão de pizzas são vendidas diariamente, segundo a Associação Pizzarias Unidas do Brasil.
A novidade: esse patrimônio gastronômico atravessa uma transformação. Em São Paulo, cidade responsável pelo consumo de 572 000 unidades por dia, cresce a moda de servir o prato montado em invencionices: coberturas de — pasme! — sushis, miúdos de frango, brownie etc. É um despautério, um anátema. A onda de “gourmetização” ganhou força na pandemia, quando as redondas foram a salvação de muita gente, e recebeu impulso na reabertura dos restaurantes. A ânsia de apresentar novidades é que tem levado a bizarrices indesculpáveis. “O que o sushi tem a ver com a massa?”, indaga o crítico gastronômico J.A. Dias Lopes, um dos mais respeitados do país, para responder com veemência: “Nada. É impossível combinar porque são ingredientes antagônicos”. É mistura ainda mais grave que as modalidades com Nutella, servidas à guisa de sobremesa, que nem para atrair o paladar infantil deveriam ter sido levadas à mesa.
Contudo, como para toda ação há reação, existe um movimento paralelo de resposta aos abusos que pretendem vender inovação e só fazem rir. Na capital paulista — e onde mais haveria de ser? — há endereços afeitos a burilar pizzas como ensinaram os italianos depois de desembarcar no Porto de Santos. Levam ingredientes artesanais comprados de pequenos produtores. “A massa feita com farinhas de qualidade é sagrada”, diz o chef Vinicius Braune, da Seo Basilico. “A longa fermentação faz toda a diferença”, ecoa o chef Mario Rosso, da Rosso Cucina. Ao beber da origem, sem a baboseira de gostos, e apenas com coberturas clássicas, de queijo, calabresa e presunto, não muito mais do que isso, os cozinheiros fazem valer uma especialidade paulistaníssima, a elegante adaptação do que trouxeram do lado de lá do oceano. “A pizza de São Paulo tem o DNA italiano, mas apresenta personalidade ítalo-paulistana”, diz Dias Lopes, que acaba de finalizar o livro Oriundi, um passeio por essa interessante importação. Até o formato foi mexido com inteligência. Na Itália, as pizzas são individuais. Em São Paulo, comunitárias. A comida, assim como outras manifestações culturais, muda com o passar da história. É bom que seja assim, sinônimo de civilização. O que não dá é permitir que embustes estraguem o paladar. Convém não deixar terminar em pizza.
Publicado em VEJA de 13 de abril de 2022, edição nº 2784