Como produtores de vinhos clássicos estão tentando se reinventar
Grifes tradicionais da Europa já perceberam que é preciso ampliar a produção, com variedade de uvas
A lista é restrita e charmosa: Rioja, Bordeaux, Douro, Piemonte e Sicília são algumas regiões europeias celebradas por seus vinhos de alta qualidade e muita história. Pontuadas por vinhedos às vezes centenários, produziram — e produzem — rótulos que se tornaram sinônimos de conhecimento gastronômico e qualidade. Para se impor ao exigente público bebedor, contudo, foi sempre preciso ostentar sabor, complexidade e consistência, um trio de elementos difícil de manter com regularidade. A tradição conta muito, claro, mas um pouco de marketing não faz mal a ninguém — afinal, é assim que os ícones são criados.
Como a fila ainda, e o gosto de boa parte dos consumidores ganha recursos para discernir o bom do ótimo — e propaganda já não basta —, até mesmo os grandes clássicos tiveram de se reinventar, e essa é a boa novidade no mundo dos vinhos. O caminho: algumas grifes lendárias buscam outras regiões, na lida com terroirs antes virgens, à cata de uvas que antes não apareciam no catálogo. Os resultados são surpreendentes — e aplaudidos.
Com mais de 150 anos, a vinícola italiana Gaja, na região de Langhe, no Piemonte, percorreu a estrada da inovação. Com uma carta que ostenta nomes como o Barbaresco e o Barolo, feitos com a uva nebbiolo, os produtores resolveram aplicar técnicas inéditas na produção de suas bebidas mais populares. Deu certo, com rápida ampliação e vendas aceleradas. Ao redor da Gaja, antes havia 100 produtores. Hoje são 800. Aos pés do vulcão Etna, na Sicília, montou-se uma outra vinícola para produzir apenas dois vinhos, um tinto e um branco, com as variedades locais, Nerello Mascalese e Carricante. Estuda-se também abrir espaço para o pinot noir na Alemanha, uma vez que as mudanças climáticas, ali, têm tornado o clima da região mais apropriado para uma variedade maior de uvas. “Temos que estar sempre preparados, olhando o futuro”, disse a VEJA Angelo Gaja, à frente da vinícola. “Se me perguntarem hoje se vou produzir rosés ou espumantes, digo ‘quem sabe?’. Temos que ser bons observadores.”
Outros produtores seguem trilha semelhante. A italiana Marchese Antinori tem uma história emblemática. Nos anos 1970, com quase seis séculos de tradição na produção de vinhos, provocou uma revolução ao lançar seu hoje lendário rótulo Tignanello. Na época, foi pioneiro por quebrar as rígidas regras para produzir os vinhos Chianti, na região da Toscana, ao usar variedades internacionais, como cabernet sauvignon e merlot, além da nativa sangiovese, produzindo o que viria a ser conhecido como o “supertoscano”. Desde então, construiu uma sólida reputação e foi além dos limites da Itália. Hoje, a empresa têm vinícolas no Chile, na Califórnia e em Washington, nos EUA, além de iniciativas em países como Hungria, menos tradicionais. Alguns deles são comercializados no Brasil.
Até mesmo alguns dos mais relevantes grupos da França, responsáveis por rótulos que custam dezenas de milhares de dólares em leilões internacionais, abriram as portas, embora de forma mais lenta. É o caso do Domaine de la Romanée-Conti, nome mais icônico da região de Borgonha. Após quarenta anos de serviço, o enólogo Bernard Noblet, responsável pela adega do château, anunciou sua aposentadoria, em 2018. Com isso, o novo responsável pelos vinhos, Alexandre Bernier, assumiu o posto e já vem promovendo algumas mudanças importantíssimas. As mais notáveis estão relacionadas ao uso dos barris de carvalho, que passam por um processo de tosta — a queima da superfície interna do tonel — mais delicado, o que a longo prazo acrescenta menos sabores adicionais à bebida. Críticos que provaram as safras mais recentes afirmam que a transformação é sutil, mas perceptível, e que os vinhos mostram um perfil de fruta mais fresca. Se até “o mais escasso, mais caro — e frequentemente o melhor — vinho do mundo”, nas palavras do crítico britânico Clive Coates, pode bulir com o passado, não há clássico que não possa ser melhorado.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2023, edição nº 2866