Como o manejo do porco em Portugal influenciou a gastronomia do Brasil?
Comitiva reúne chefs, pesquisadores e curiosos para entender o assunto
“Quem vai querer o bacalhau?”, perguntava aos berros o apresentador Chacrinha nos anos 1970 e 1980 antes de lançar a peça para a plateia. Era um modo de celebrar o peixe tido como sinônimo da gastronomia portuguesa, embora a espécie não seja encontrada nas águas de lá, sempre importada. Mas então a quem caberia o posto de comida típica do além-mar? Poderia ser a sardinha, presente na costa lusitana e frequente em inúmeras receitas tradicionais. Mas o verdadeiro rei da cozinha de Portugal é o porco, dono de posição central no cotidiano e na culinária da terrinha. E, de quebra, teve papel fundamental no desenvolvimento do Brasil. Para retomar essa história, a Comitiva Do Rabo ao Focinho levará um grupo de chefs, pesquisadores e curiosos a fazendas, restaurantes e açougues portugueses onde a tradição envolvendo o animal continua tão viva como sempre.
A iniciativa foi criada por Rafael Cardoso, conhecido como Rafa Bocaina, produtor que cria porcos caipiras no interior de São Paulo, e a pesquisadora Carla Spironelo, que mudou para Portugal de modo a estudar de perto essa cultura. A primeira edição aconteceu do começo deste ano, e a segunda turma percorrerá o país no ano que vem. Mais do que uma viagem turística, a comitiva tem gerado conhecimento e apresentado uma parte da cultura portuguesa que dialoga muito com a brasileira, mas que permanece pouco conhecida pela maioria. “É preciso olhar para o porco de forma profunda, com muito cuidado”, diz Spironelo. O nome do projeto faz referência à variedade de preparos envolvendo a carne de porco, de pratos com cortes nobres a embutidos (ou “enchidos”, como são chamados por lá) feitos com miúdos. Tudo, de fato, se aproveita.
Em Portugal, há três raças principais. O grande astro é o porco alentejano, ou porco preto ibérico, como também é conhecido. É uma das espécies usadas na elaboração do prestigioso Pata Negra, celebrado pela qualidade de sua carne, com muita gordura entremeada, e pela importância que tem na gastronomia. E também foi uma das duas raças trazidas ao Brasil pela esquadra de Martim Afonso (1500-1564) em 1532, junto com o porco macau, popular na Ásia e que rapidamente se aclimatou por aqui e deu origem a raças crioulas, como o caruncho e o canastra, entre outras. As outras duas raças portuguesas são o malhado de Alcobaça, cuja carne tem uma tradicional capa de gordura, e o bísaro, que será o foco da comitiva do ano que vem. Criado de forma semi-intensiva, tem uma dieta baseada parte em ração e parte nos alimentos da horta de cada produtor. “A grande vocação do porco é digerir, convertendo algo que pode não ter mais serventia em algo de enorme valor, que é sua própria carne”, diz Rafa Bocaina. “É algo que se perdeu com a suinocultura industrial.” Para ele, o verdadeiro porco caipira é um animal que combina raça, manejo e delimitação territorial de forma completa, como ocorre entre portugueses.
Esse sistema de manejo mais tradicional está intrinsecamente ligado a rituais como a matança do porco. Embora possa soar como um espetáculo mórbido, o ato é visto como um momento de comunhão e valorização do animal, tradição ibérica nunca abandonada. Por aqui, há ainda longa estrada, sinuosa, para reconhecer hábitos antigos e compreender a origem dos alimentos consumidos — além de recuperar estilos de produção que não podem ser abandonados. “No norte de Portugal, o porco bísaro é motivo de orgulho, pois gera sustento para muita gente”, diz Spironelo. Em tempos de desconexão com a comida, há muito valor — e sabor — em entender cada etapa da cadeia alimentar. É cultura fundamental e, acima de tudo, deliciosa. Para que abandoná-la?
Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2024, edição nº 2915