Chef mostra por que a gastronomia do Peru é hoje uma das mais celebradas do mundo
Graças ao trabalho de chefs como Pía León, o país virou referência absoluta e reputada na cozinha de vanguarda
Antes que o primeiro prato da chef peruana Pía León fosse servido, o jantar começou com uma experiência para os olhos. Os guardanapos, tingidos com um tom claro de amarelo proveniente da planta kjolle (pronuncia-se “koie”), árvore que cresce a cerca de 3 500 metros de altitude, usada pelos povos andinos para dar cor a roupas, funcionaram como cartão de visita. A tonalidade solar extraída da natureza é a inspiração para o nome de seu restaurante, o Kjolle, eleito o quarto melhor da América Latina pelo ranking World’s 50 Best Restaurants.
O menu despontou impresso com um desenho geométrico de cores inspiradas na paleta dos ingredientes que seriam degustados na sequência. Quando finalmente chegaram à mesa, as criações de Pía cativaram antes da primeira garfada. O prato denominado “muitos tubérculos”, por exemplo, é uma mistura de ingredientes regionais como mandioca, oluco e sacha papa (o inhame brasileiro), dispostos como em uma delicada guirlanda. O peixe do dia foi servido em lascas finas dentro de um caldo feito com lulo, fruto conhecido por sua acidez elevada, com tiras ainda mais finas de arracacha (a mandioquinha das bandas de cá) por cima. Resumo da noite: gastronomia saborosa e rica em referências, capaz de bater no paladar e emocionar. Graças ao trabalho de Pía, e de outros chefs e cozinheiros do Peru, o país virou referência absoluta e reputada na cozinha de vanguarda.
A equipe de Pía esteve no Brasil para preparar um jantar no restaurante Cipriani, dentro do Copacabana Palace, no Rio de Janeiro. Trouxeram nove malas, com ingredientes e materiais adequados ao celebrado evento. A trupe desembarcou em missão diplomática, por assim dizer. O plano de legítimo soft power: mostrar o que é feito nos Andes, na costa e na região amazônica da nação. Não por acaso Pía é a chefe de missão. Sua trajetória é impressionante. Ela começou a trabalhar cedo e, aos 21 anos, entrou no Central, eleito o número 1 do mundo em 2023. Casou-se com o chef, Virgilio Martínez, e chegou a assumir o comando da casa. Hoje, além do Kjolle, que toca sozinha, cuida de outros dois estabelecimentos ao lado do marido, o Mil, em Cusco, e o mais recente, MAZ, em Tóquio, no Japão. Foi eleita a melhor chef mulher da América Latina, em 2018, e do planeta, em 2021.
A espinha dorsal de seu brilho, no entanto, está no Mater, um centro de investigação multidisciplinar montado com biólogos, botânicos, geólogos e outros profissionais. “O objetivo é explorar, investigar, registrar e interpretar os recursos dos ingredientes, de olho em técnicas inovadoras”, disse ela a VEJA. Trata-se, enfim, de um laboratório para o que será levado à mesa e aplaudido, em um fascinante balé a beber do passado ancestral e das interpretações modernas. O segredo de tanta versatilidade, como mágica: a enorme biodiversidade à disposição. O Peru é um dos dezessete países conhecidos como “megadiversos” por suas riquezas naturais (Índia, África do Sul e Brasil, por exemplo, fazem parte dessa turma). “O Mater nos ajuda a mostrar o que a culinária significa para nós, uma mistura de arte e cultura, o casamento de pessoas e histórias, ancoradas em técnicas de trabalho”, afirma Pía.
O reconhecimento do Peru como destino gastronômico incontornável, sublinhe-se, tem ganhado força nos últimos anos. O chef Gastón Acurio, do icônico Astrid&Gastón, foi precursor do movimento e tutor de uma geração de cozinheiros. Com o sucesso do Central, logo outras casas passaram a atrair críticos e comensais em igual medida, e criou-se em Lima um padrão altíssimo de qualidade. A recém-divulgada lista dos cinquenta melhores da América Latina tem oito estabelecimentos peruanos. Além do Kjolle, na quarta posição, o top 10 conta com o Maido, em segundo, e o Mérito, em oitavo. Mais do que um fenômeno regional, o sucesso da gastronomia peruana tem jogado luz na produção de toda a América Latina, o que é benéfico para todo o continente. Brasil, Colômbia, Argentina e outros países passaram a ser celebrados de maneira inédita. Antes, os louros eram reservados sobretudo para os estabelecimentos de origem europeia e americana, e adeus às proezas autóctones. Não é mais assim, em um dos mais interessantes movimentos de um tempo feito de polarização política e xenofobia. As fronteiras, que bom, encolhem quando comemos.
Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2024, edição nº 2923