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Arqueologia na garrafa: os achados de enólogos da região do Douro

Eles resgatam antigas variedades de uvas locais, esquecidas pelo tempo, em interessante movimento

Por André Sollitto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 jun 2024, 16h42 - Publicado em 25 Maio 2024, 08h00

Faz bem aos olhos e ao paladar. A região do Alto Douro Vinhateiro, no nordeste de Portugal, próxima da cidade do Porto, com videiras plantadas nas encostas à beira do rio que dá nome à paisagem, é considerada desde 2001 patrimônio mundial pela Unesco, dada a beleza do lugar. Foi ali, em 1756, que o Marquês de Pombal (1699-1782), então secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino de dom José I, criou uma classificação para avaliar as vinícolas daquele chão — e pela primeira vez na história deu-­se a demarcação de terra atrelada a um tipo específico de vinho, dito “fortificado”, no jargão, de maior teor alcoólico e potencial de guarda. Foi uma jogada pioneira e visionária, feita 99 anos antes da denominação de Bordeaux, na França.

Com o passar do tempo, o Douro começou a produzir também safras de outra ordem, os “tranquilos”, de fermentação natural e sem as borbulhas características de um espumante. Eles são elaborados com uvas relevantes como a touriga nacional e a touriga franca (ou francesa, como é conhecida). Há agora, para além da linhagem mais comum, para além dos celebrados fortificados e tranquilos, uma novidade interessante demais para ser desdenhada: a produção de rótulos ancorados em outras variedades de uvas, antigas, esquecidas pelo tempo, abandonadas, mas que ainda podem vicejar com potência. É um trabalho de arqueologia, liderado pela jovem geração de enólogos, treinados com ciência para olhar o passado do terroir e zelar pela inovação.

SEGREDOS - Passado: investigação em vinhedos com mais de 150 anos de idade
SEGREDOS - Passado: investigação em vinhedos com mais de 150 anos de idade (Maksym Kaharlytskyi/unsplash/.)

Um bom exemplo dessa tendência está na Real Companhia Velha, a mais antiga empresa de vinhos de Portugal. Estabelecida em 1756, quando Pombal assinou o decreto seminal, tinha como missão proteger a qualidade das safras lá extraídas e as boas práticas vitivinícolas. Ao longo de mais de 200 anos, tornou-se nome incontornável em qualquer conversa de amadores e profissionais do Porto. Nos anos 1950, expandiu os negócios. Acreditava-se, naquele tempo, como ainda até muito recentemente, que as “boas uvas” deveriam ser reservadas apenas ao vinho fortificado. Mais tarde, as portas foram abertas para os tranquilos. E agora, enfim, a terceira geração no comando da casa, aos cuidados de Pedro da Silva Reis, tem se debruçado sobre a herança local. “Analisamos os vinhedos que nossos antepassados deixaram e às vezes encontramos trinta, quarenta variedades em uma única parcela”, diz Reis. “Até muito recentemente não havia essa preocupação.” E deu-se o sucesso de castas autóctones, como gouveio, bastardo, rufete e donzelinho branco, entre outras, de nomes simpáticos. Elas deram origem ao projeto Séries, celebrado internacionalmente pela coragem de vasculhar as camadas do ontem.

arte vinho

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A onda não para de crescer, em bonito movimento. Outras vinícolas daquele naco da Península Ibérica buscam iluminar a diversidade de antanho. A enóloga Joana Maçanita, que já prestou consultoria para produtores de norte a sul em Portugal, encontrou no Douro o local ideal para um projeto pessoal, desenvolvido ao lado do irmão, Antonio. Ao analisar vinhedos antigos, alguns com mais de 150 anos de idade, encontrou categorias de uvas promissoras, como a cornifesto, tinta carvalha, tinta bastardinha e casculho. “Nem mesmo reputados e treinados enólogos de Portugal as conhecem”, diz ela, com a precisão de quem abandonou o curso de engenharia para mudar de profissão.

A jornada ainda será longa, em um festival de possibilidades, mas há um desafio: convencer o consumidor a abrir mão do conhecido. No mundo do vinho, todo lançamento é visto com desconfiança, antes de ser aprovado em degustações. Se a novidade tem cara de antigamente, como no Alto Douro Vinhateiro, o obstáculo é ainda mais alto. A tradição é dura de ser vencida, até que se possa proferir uma frase de Louis Pasteur (1822-1895): “Uma garrafa de vinho contém mais filosofia do que todos os livros do mundo”.

Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894

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