“A cozinha me salvou”, diz chef badalado que superou pobreza e violência
O baiano João Diamante, 32, preparou jantar especial para o presidente Lula e outros líderes da América Latina, no fim de maio
Eu nasci em Salvador, na Bahia, mas com apenas 1 ano de idade fui levado pela minha mãe, uma empregada doméstica, para o Rio de Janeiro. Ela tinha se separado de meu pai, um técnico elétrico, e viajamos de carona com caminhoneiros até o Complexo do Andaraí, onde moramos eu, minha mãe e minha irmã, de 5 anos, de favor na casa de uma tia. Comecei a trabalhar aos 8, fazendo bicos para uma padaria do bairro. E foi lá que tive o primeiro contato com a cozinha. Em casa, a comida era bem simples, com arroz, feijão e ovo. Apesar de ser pobre, sempre gostei de comida fresca, e minha irmã, que cuidava de mim enquanto nossa mãe saía para trabalhar, tinha preguiça de cozinhar. Então, comecei a me mexer. Jamais imaginei que esse interesse me levaria a tantos lugares incríveis, como outros países, e até a preparar um jantar especial para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e outros líderes da América Latina — como aconteceu no final de maio, em Brasília.
Na infância, participei de diversos projetos sociais da prefeitura e de ONGs, tendo contato com balé, teatro, capoeira, futebol e música. Essas experiências me fizeram criar um entendimento maior sobre educação e responsabilidade social, além de terem me tirado daquele meio no qual todo mundo sabe que tem muita desigualdade e violência, com tiroteios e mortes. Posso dizer que a cozinha salvou a minha vida, pois perdi mais de cinquenta amigos para o tráfico de drogas. Aos 18, fui cumprir o serviço militar obrigatório e entrei para a Marinha, onde atuei por cinco anos. Curiosamente, foi na vida militar que aprendi a cozinhar profissionalmente. Passei a preparar as refeições do nosso almirante, e ele me incentivou a seguir nessa profissão. Após deixar a Marinha, fiz um curso de nutrição e dietética, e depois uma graduação em gastronomia. Me formei como um dos três melhores alunos da turma e fui selecionado para ganhar uma bolsa de estágio na França, para trabalhar com o renomado chef francês Alain Ducasse. Cheguei a atuar na cozinha do restaurante Le Jules Verne, localizado na Torre Eiffel.
Ao voltar para o país, abri meu próprio restaurante, o Na Minha Casa, de cozinha contemporânea brasileira e que funciona de forma itinerante e comunitária: abro apenas por curtos períodos ao longo do ano, e o cliente decide quanto quer pagar pelos pratos. A experiência interessou até a Netflix, que gravou o meu negócio para a série Alguém Dê de Comer ao Phil. Também fui chamado para trabalhar no Museu do Amanhã e ganhei prêmios de chef revelação. Decidi retribuir meu sucesso ajudando a sociedade de alguma forma também, usando a gastronomia como ferramenta. Com isso, criei em 2016 o Diamantes na Cozinha, um programa para ajudar pessoas que se encontram em vulnerabilidade social, a fim de ensiná-las a cozinhar e a empreender, talvez transformando a culinária em uma fonte de renda. Já formamos mais de 300 alunos e impactamos aproximadamente 3 500 pessoas ao todo. Neste ano, também recebi um convite para ser jurado do reality culinário Minha Mãe Cozinha Melhor que a Sua, na Globo. Conheci a primeira-dama, Janja da Silva, em um evento que ocorreu quando Lula ainda era pré-candidato. Ela se interessou pelo meu trabalho e me convidou para assinar o cardápio do jantar do encontro do presidente com chefes de Estado da América do Sul, em maio. Foi gratificante ser elogiado por figuras tão importantes, e vejo como isso pode abrir portas para mais pessoas como eu. O que sempre me encantou na culinária é a possibilidade de mudar a vida de uma pessoa por meio dos alimentos. Hoje, ainda moro no Grajaú porque amo a minha comunidade, e espero continuar transformando vidas com a ajuda da gastronomia.
João Diamante em depoimento dado a Kelly Miyashiro
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2023, edição nº 2849