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Uma pequena história de como a camisa da seleção virou do avesso

Durante as Diretas Já, em 1984, o amarelo vestia um lado do país que não concordaria com a porção que hoje a exibe. É um cisma profundo

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 nov 2022, 13h14 - Publicado em 24 nov 2022, 08h00

DOHA – “Ando com minha cabeça já pelas tabelas/claro que ninguém se toca com minha aflição/quando vi todo mundo na rua de blusa amarela/ pensei que era ela puxando o cordão/ oito horas e danço de blusa amarela/ minha cabeça talvez faça as pazes assim/quando ouvi a cidade de noite batendo panelas/pensei que era ela voltando pra… minha cabeça de noite batendo tabelas”. Houve um tempo, em 1984, quando Chico Buarque compôs Pelas Tabelas, que vestir amarelo era coisa de gente que gritava pelo fim definitivo do regime militar. O samba-canção dança em torno da cor que simbolizou a campanha pelas Diretas Já. A emenda constitucional que a propunha, contudo, foi derrotada no Congresso, numa noite amargamente histórica em que centenas de milhares de brasileiros saíram às ruas de camisa amarela – algumas especialmente estampadas para a oportunidade, embora houvesse também exemplares da seleção, ainda feitas de algodão – para chorar a derrota em Brasília. Mas o processo de abertura não podia ser contido, e no ano seguinte o Colégio Eleitoral escolheria o mineiro Tancredo Neves como presidente da República. O resto é história. 

O locutor esportivo Osmar Santos, um dos símbolos daquele tempo, faria a metáfora inevitável  com o futebol. Assim: “A campanha das Diretas Já começou pequena, delicada, com a sutileza das ideias. E se transformou num oceano, num mar de gente espalhado pelas praças do país afora. A sensação de estar diante de um milhão de pessoas unidas pelo mesmo objetivo é indescritível. E significou a maior emoção de minha vida. Como se estivesse gritando gol um milhão de vezes, gol do meu povo, de minha gente. E que goooooooool”. Até Pelé vestiu um uniforme da campanha em capa da revista PLACAR. 

Mas o que aconteceu, de lá para cá, de modo a fazer o fulvo mudar de lado ideológico? A casaca começou a virar nas manifestações de junho de 2013, a grita no avesso de tudo. Os brasileiros foram à rua contra a presidente Dilma Rousseff, mas também contra o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, o prefeito Fernando Haddad, contra políticos de todos os partidos, à esquerda e à direita. “Vem pra rua, porque a rua é a maior arquibancada do Brasil”, trecho de uma letra do grupo O Rappa, ecoou no asfalto – era mês da Copa das Confederações, que tradicionalmente serve de prólogo para a Copa do Mundo, que o Brasil receberia no ano seguinte. “Não vai ter Copa”, ouvia-se pelo país inteiro – e como a Copa estava ali na esquina, houve quem protestasse com a canarinho. O comportamento pegou. Em 2014, na Copa, o incêndio contra a presidente Dilma Rousseff parecia incontrolável. Na abertura do torneio – vitória de 3 a 1 contra a Croácia – um Itaquerão lotado por torcedores que pagaram caro, muito caro, pelo ingresso, ouviu um coro infeliz que xingava a presidente. O jogo, a vitória, Dilma na tribuna, a crise econômica que ganhava tração, os deputados e senadores de oposição – naquele momento deu-se o amálgama entre a mais celebrada camisa de futebol do mundo, a canarinho, e o universo dos interesses políticos. Bolsonaro e os bolsonaristas eram uma semente que ninguém notava. Foi só em 2016, com as passeatas pelo impeachment, em que Bolsonaro finalmente chegou a dar as caras e muitos de seus apoiadores bradavam pela volta dos tanques, é que a maré amarela tomou conta das avenidas como nunca antes – nem mesmo na jornada das Diretas Já. Em 2018, com a disputa entre Bolsonaro e Haddad, o jogo de cores ficou completo. O discurso de “minha bandeira não será vermelha” colou – e então a amarela da seleção se transformou em ícone de um lado, antagonista do outro. 

PRESSÃO GOLPISTA - Ato em Brasília: manifestantes pedem ação de militares contra a eleição -
A canarinho nos bloqueios de estradas: símbolo de quem grita contra as urnas eletrônicas (Joédson Alves/EFE)

Vestir a camisa da seleção, nos últimos anos, virou manifesto: tê-la no corpo parece não deixar dúvida – o cidadão apoia Bolsonaro, é de direita. Os estrangeiros que, no Catar, vestem o amarelo, não conhecem essa divisão, podem no máximo ter lido ou ter ouvido alguma coisa, mas não se interessam. Nas lojas abarrotadas do Souk Waqif, o mercado central de Doha, a amarelinha faz sucesso – bem mais do que a azul ou versões estilizadas em que apenas o escudo da CBF é identificado como símbolo do Brasil. Nos estádios cataris, em dias de jogo do time de Tite, a cisma deve desaparecer – a não ser pelo fato de a maioria dos torcedores brasileiros terem pagado caro pela viagem e pelos bilhetes, o que possivelmente os aproxima muito mais de um flanco do que do outro, dado os resultados das eleições. E convém não esquecer do apoio de Neymar à candidatura de Bolsonaro contra Lula

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Torcedores no Catar com a canarinho: símbolo internacional de quem gosta de futebol
Torcedor no Catar com a canarinho: símbolo internacional de quem gosta de futebol (- Francois Nel/Getty Images)

O puxa daqui, puxa dali, para saber quem é dono da camisa, continuará, numa infelicidade. Boa parte das excêntricas e mercuriais pessoas que ainda tentam barrar caminhões nas estradas, alegando suposta e esdrúxula fragilidade das urnas eletrônicas, ostenta a camisa da seleção – e não por acaso, desde o ano passado, o braço brasileiro da fabricante da camisa pôs um mar de exemplares azuis no mercado, em quantidade muito maior do que em anos anteriores, porque a amarela ficou contaminada pela política, e seguirá sendo objeto de disputa. A equipe de transição do presidente Lula tem um plano para a tarde de hoje e as outras em que o Brasil entrar em campo no Catar: vestir a amarela com o número 13 às costas. No Twitter, ele escreveu, um pouco antes das eleições: “A Copa do Mundo começa daqui a pouco e a gente não tem que ter vergonha de vestir a camisa verde e amarela. A camiseta não é do partido político, é do povo brasileiro. Vocês vão me ver usando a camiseta amarela, só que a minha terá o número 13”. Muito provavelmente, depois de século, ou talvez desde sempre, Bolsonaro e Lula vestirão a mesma tonalidade. 

Contudo, mesmo com novo presidente, pouco importa o Brasil erguer ou não a taça, tudo indica que ainda por muito tempo a camisa amarela da seleção rache o país ao meio. Continuará a vestir, majoritariamente, uma porção facilmente identificável. A outra apelará para o azul, e olhe lá. A solução, se houver, virá com o tempo. E quem sabe, para resolver de uma vez por todas a pendenga, não se decida retroceder a antes de 1953. Naquele ano, o escrete usou pela primeira vez o amarelo, para apagar de uma vez por todas o trauma do branco de 1950. 

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Não nos enganemos: a onda amarela que deve ocupar o estádio Lusail, na tarde desta quinta-feira, 24 de novembro, não significa unanimidade – por trás da imagem tingida e exibida ao mundo pela televisão, há uma briga que manchou o adorado manto de quem gosta de futebol. A Copa do Mundo deveria representar a trégua que autorizasse descolá-lo de toda guerra política, mas não é assim – ou ainda não é assim. Os brasileiros andam com suas cabeças pelas tabelas. 

Pelé em histórico ensaio para PLACAR: do lado da democracia de 1984
Pelé em histórico ensaio para PLACAR: do lado da democracia de 1984 (Ronaldo Kotscho/Placar)

 

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