Em 1980, os organizadores dos Jogos Olímpicos de Inverno de Lake Placid, nos Estados Unidos, assustaram-se quando a falta de nevascas nas montanhas da charmosa vila no estado de Nova York impediu que as pistas de cross-country fossem cobertas pelo gelo. Para receber as competições, eles foram obrigados a contratar caminhões abarrotados de neve artificial. Foi a primeira vez que o mundo esportivo enfrentou o que, soube-se mais tarde, era reflexo dos efeitos das mudanças climáticas. Com o passar dos anos, e o avanço do aquecimento global, o cenário agravou-se. Nos Jogos de Sochi-2014, na Rússia, 80% da neve usada nas arenas esportivas era artificial. Em PyeongChang-2018, na Coreia do Sul, o índice chegou a 90%. A nova edição da Olimpíada de Inverno, aberta oficialmente na sexta-feira 4, em Pequim, quebrou um triste recorde. Toda a neve do evento — sim, 100% — não veio dos desígnios da natureza, mas de fábricas erguidas pelo homem.
A neve natural está escasseando em muitas regiões do mundo, inclusive nas duas áreas próximas a Pequim, Yanqing e Zhangjiakou, onde acontecerão as provas de montanha. O problema é que também falta água, matéria-prima para a fabricação mecânica dos flocos. Cria-se, como consequência, um círculo vicioso que poderá pôr em risco a realização de futuros Jogos. Em Pequim, a fabricação da neve será feita pela empresa italiana TechnoAlpin, fornecedora dos 100 geradores e 300 canhões que trabalharão para cobrir as pistas de esqui com um manto de neve branco, fofo e antinatural. A tecnologia envolve o uso de ferramentas que produzem uma mistura de água e ar comprimido. No contato com o ar frio, que é regulado por meio de um algoritmo, as microgotas congelam-se e formam cristais de neve a caminho do solo. Os equipamentos trazem potentes ventiladores que lançam os flocos nas pistas.
Ambientalistas calculam que os chineses usarão 185,5 milhões de litros de água de fontes naturais na produção de neve artificial, embora os organizadores dos Jogos assegurem que o atual sistema de fabricação empregue 20% menos líquido do que outros métodos. Além disso, o comitê acrescentou que o abastecimento local não será prejudicado, porque serão adotados métodos de reciclagem como coletar neve derretida em lagos de retenção e acondicionar o excesso das chuvas de verão em depósitos.
Um estudo realizado por pesquisadores do Sport Ecology Group, da Universidade Loughborough, na Inglaterra, e pelo grupo ambiental multinacional Protect Our Winters mostrou que não é tão simples assim. “Não se trata apenas do uso intensivo de água e energia, frequentemente associado a produtos químicos que retardam o derretimento”, diz o relatório. “O uso de neve artificial oferece uma superfície que muitos concorrentes dizem ser imprevisível e perigosa.” De acordo com a pesquisa, estações de neve irregulares e o derretimento rápido das coberturas de baixo nível estão se tornando mais comuns. “O risco é claro: o aquecimento causado pelo homem está ameaçando o futuro dos esportes de inverno”, diz o levantamento. “Também está se reduzindo o número de locais climaticamente adequados para os Jogos de Inverno.”
Desde que Chamonix abrigou os primeiros Jogos de Inverno, em 1924, 21 cidades serviram de sede das competições. Os pesquisadores avaliam que, até 2050, apenas dez terão os níveis naturais de queda de neve para sediar um evento dessa natureza. A francesa Chamonix está numa lista de alto risco, assim como localidades na Noruega, França e Áustria. A experiência chinesa mostra que já chegou o dia em que se depende de máquinas e não da natureza para competir na neve. E o cenário tende a piorar.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2022, edição nº 2775