É a mais conhecida fotografia de esporte da história – ou talvez seja uma das mais celebradas imagens do ativismo político dos anos 1960. Lá estão os vencedores dos 200 metros rasos da Olimpíada da Cidade do México, em 1968: os americanos Tommie Smith, medalha de ouro; John Carlos, medalha de bronze; e um terceiro homem, o australiano Peter Norman, o segundo colocado. Smith ergue os punhos da mão direita, envolvida por uma luva. Carlos levanta o braço esquerdo, com os dedos também cobertos. Os dois negros estão cabisbaixos. O branco mira um ponto do horizonte desconhecido. A dupla dos Estados Unidos, ativistas do movimento Panteras Negras, mostrava ao mundo, no calor de um ano nervoso, que nem tudo era olímpico.
Em abril, Martin Luther King Jr. tinha sido assassinado. Em junho, Bob Kennedy. Ao voltar para casa, os atletas foram tratados como párias pelas autoridades esportivas. Os cartolas do Comitê Olímpico Internacional, o COI, retiraram as láureas da dupla. Viraram heróis da causa negra, ao lado de personagens como Muhammad Ali. A reabilitação de Smith e Carlos demoraria. Em 2008, quarenta anos depois, Barack Obama os recebeu na Casa Branca para entregar uma medalha de honra ao mérito.
É improvável que ao subir ao pódio amanhã, no Stade de France, para receber o ouro, Letsile Tebogo, de Botsuana – vencedor da prova com o espetacular tempo de 19s46 –, erga os punhos. Era mais provável que Noah Lyles, dos Estados Unidos, em decepcionante terceiro lugar, o fizesse, mas com uma outra mensagem. Para ele, e com razão, há desequilíbrio injusto entre modalidades ricas, como o basquete da NBA e a NFL, a liga de futebol americano, e patinhos feios como o atletismo, que somente a cada quatro anos ganham alguma ribalta.
Marqueteiro, Lyles, caso vencesse, subiria no topo do topo com saltinhos, arrogante, feliz da vida – mas Tebogo e o segundo lugar, o americano Kenneth Bednarek, impediram a festa. O sino que Tebogo tocou no Stade de France, e que no futuro será levado para a Notre Dame, ecoa na cabeça do velocista fanfarrão. “Meu objetivo principal é tirar o meu esporte da esfera tradicional, levá-lo a um outro patamar”, disse Lyles. Seu adversário cuidará disso.
UM ÚNICO PAR DE LUVAS
Aos 56 anos do grito dos Panteras Negras, a pompa das medalhas deste verão canicular parisiense, com um campeão velocista de país habituado a maratonistas, remeterá àquela cena que ajudou a definir o século XX. E então, porque tudo é história, e invariavelmente ela apaga quem não interessa, é hora de iluminar o terceiro personagem da cena, o branquelo Norman. É comum ver publicada a foto com um corte, deixando em cena apenas Smith e Carlos. É comum, em tolas interpretações do instante mágico, comparar a postura altiva dos negros com o constrangimento do australiano. Mas não foi nada disso.
Norman, filho de uma família de militantes de esquerda, apoiou os adversários. Ele mesmo contaria que, no vestiário, antes de serem chamados para a premiação, os americanos se aproximaram dele anunciando a cena que explodiria logo depois. Norman disse apoiá-los. Recebeu de Smith um adesivo que colou no lado esquerdo do peito: “Olympic Project for Human Rights”. Foi Norman, aliás, quem sugeriu que a dupla dividisse o par de luvas. Os dois americanos viraram ícones, ainda que tenham apanhado muito de parte da sociedade segregacionista – embora tenham sido sobejamente defendidos por organizações que andavam na mesma estrada de ideias.
Norman foi esquecido. Voltou para a Austrália e apanhou sozinho, sem voz. Ele morreu em 2006. Em imagem comovente – eis a beleza do esporte a mover as placas tectônicas da sociedade –, seu caixão foi transportado até a cova por Tommie Smith e John Carlos. Ouro, prata e bronze. A glória de Tebogo, Bednarek e Lyles (embora para o terceiro o resultado tenha sido um traque) é um aceno ao trio de 1968 – especialmente ao rosto que foi apagado, e esteve lá, do lado certo.
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Em tempo, em anotação feita depois do pódio: Lyles, diagnosticado com covid-19, estava de máscara e cumprimentou a pessoa que lhe entregou a medalha com o cotovelo, por cautela. Foi como um punho erguido, em defesa da ciência e da saúde.