LUSAIL – Ele já sabia que seria assim. Em sua quinta Copa, aos 35 anos, Lionel Messi teria de uma vez mais levar nos ombros o peso do mundo – ou melhor, teria de carregar nas costas a infinita sombra de Diego Armando Maradona. Não dá para ser argentino e jogador de futebol sem levar na outra ponta da balança a história, as conquistas e o jeito de ser de El Diez. É inevitável. No Brasil, a bem da verdade, a figura de Pelé não incomoda – porque o Rei é de outra galáxia, está em praleteira inalcançável, e porque ao longo das décadas brotaram outros grandes jogadores da canarinho em cinco títulos mundiais. Na Argentina é diferente. Há uma única referência.
Messi quer dar as mãos a Maradona como herói nacional. A vitória por 2 a 0 contra o México – um gol dele, é claro, o primeiro – mantém a janela aberta. Mas há uma distinção fundamental, por ora: um ergueu a taça do mundo, o outro não. É muita coisa, separa os mitos dos que estão um andar abaixo. Convém não esquecer a fenomenal qualidade de Messi, seus títulos no Barcelona, mesmo no PSG, a beleza que é vê-lo jogar. Trata-se de não esquecer que, com o tento deste sábado no Catar, ele empatou com Maradona em número de gols em Copas: 8. Não é marca suficiente para equipará-los, mas calma lá porque a Argentina parece ter renascido, mesmo sem uma partida fenomenal. E ressalve-se: Messi está em sua quinta Copa. Maradona disputou quatro.
Contudo, em tempo de Mundial, evento que molda mitos e destrói esperanças, ao menos até que ela termine, sempre que se falar de Messi, alguém lembrará: “ei, e o Maradona?”. Messi sabe disso, sempre soube. Na véspera da recuperação contra o México, ele postou no stories do Instagram uma foto de Maradona, exatos dois anos depois da morte do craque, em 25 de novembro de 2020.
Nos próximos dias, e a Polônia é adversário complicado, Messi atravessará a inglória avenida alviceleste dos que o incensam, de um lado, e os que o criticam, por ainda não ser Maradona. Em 2014, porque o embate começou desde que Messi tocou numa bola pela primeira vez, VEJA pediu ao escritor e roteirista argentino Eduardo Sacheri, autor do romance O Segredo dos seus Olhos, cuja adaptação para o cinema ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2010, um artigo em torno de Messi com olhos em Maradona. Sacheri reconstruiu um texto que havia escrito para a revista El Gráfico, sob o título “Não é sua culpa”. Lê-lo hoje o faz permanentemente atual, a mais perfeita tradução do olhar atento de Messi – não para a bola, porque os craques não a miram, sabem onde ela está. Eis o que escreveu Sacheri:
“‘Ninguém é profeta em sua terra’ é um dos muitos ditados que minha avó me ensinou. Quando menino eu os ouvia e, por diversas vezes, precisei de explicações: era sentido demais condensado em pouquíssimas palavras. Ninguém é profeta em sua terra porque as pessoas mais difíceis de entusiasmar e comover são, em geral, as mais próximas de nossas próprias vidas. E o êxito é mais esquivo quando os que têm de julgá-lo são os que compartilham conosco um passado, uma cultura, uma vizinhança.
O caso de Lionel Messi não parece ser uma exceção. Há anos ele ocupa as primeiras páginas dos jornais e as telas de televisão. Ele obriga os especialistas na história e nas estatísticas do futebol a revisar às pressas todos recordes para anotar o dia e a hora em que ele os estraçalha. Ele é uma máquina de ganhar jogos, de conquistar campeonatos, de despertar elogios rasgados.
E, no entanto, Messi encontra na Argentina um sólido ceticismo, como se os seus compatriotas nos empenhássemos em dificultar-lhe ao máximo as coisas. É isso que me traz de volta à memória aquele ditado de minha avó Nelly. Ninguém é profeta em sua terra, e, no entanto…
Na Argentina tivemos um. Um profeta, quer dizer. Um profeta do futebol que se chama Diego Armando Maradona. Um nome. Vinte letras que nos chegam do passado e nos predispõem ao futuro. O herói que pôde. O herói que conseguiu. Por sua mão não só conseguimos ganhar um campeonato mundial, mas fazê-lo com a grandiloquência com que nós, argentinos, secretamente gostamos de fazer as coisas. México 86 não foi unicamente um Mundial. Foi um daqueles mundiais que reuniram grandes jogadores, equipes fantásticas, partidas inesquecíveis. E nesse Mundial superlativo, a Argentina foi a que jogou melhor. E Maradona foi seu líder e sua estrela. Sete partidas inesquecíveis, incluindo um gol de placa contra a Inglaterra que serviu para os argentinos estancassem, ao menos em parte, ao menos por algum tempo, o sangramento de uma ferida que trazíamos de outro lado muito mais atroz do que um campo de futebol.
Até esse Mundial, Maradona não era um profeta. Era um fantástico jogador de futebol. Depois … depois ele se converteu em outra coisa. Em muitas outras coisas. Converteu-se, por exemplo, no parâmetro com o qual nós argentinos temos de medir todos nossos jogadores de futebol. Simples assim. Cruel assim.
Em qualquer conversa de futebol pode suceder. E sucede sempre. Basta que alguém coloque sobre a mesa o nome de Lionel Messi. Não passam três minutos até que outro levante, diante desse nome, o outro nome. O definitivo. O de Maradona. E começam as comparações. O nostálgico do carisma de Diego se queixará de que Messi não fala no campo e recordará a maneira como Diego discutia com os árbitros, com os rivais, com os jornalistas. O que sente saudade de sua emotividade reclamará que Messi não canta o Hino Nacional e se lembrará de como o velho número dez se indignou com todo um estádio no Mundial de 90 quando os italianos vaiaram nossa canção pátria. O nostálgico de seu chute lamentará que Messi não chuta tão bem a bola e fará um ensaio filosófico intitulado “Diego e os tiros livres”. Ao final, todos estalarão as línguas, balançando a cabeça, e murmurando “Não me vá comparar…” quando são eles, precisamente eles, os que comparam.
Não é culpa de Messi que Diego tenha significado tudo que significou. Nem é culpa de Messi ter outro caráter, outro estilo, outra maneira de ser, outra maneira de lidar com seus companheiros ou de andar no campo. Nem é culpa de Messi que nós argentinos sejamos incapazes de encerrar nosso luto por Diego, por sua aposentadoria, por sua partida, pelo fato inquestionável de que ele não joga mais.
Messi não tem por que ser como Diego. E é melhor que não seja. Porque cada jogador – e cada pessoa – merece ser o que quiser, ou o melhor que puder, mas sem ter de se mirar a cada dia no espelho inatingível da admiração dos outros por alguém que não é ele.
Enquanto releio o que escrevi, e tamborilo com os dedos na beirada da mesa, me ocorre outra ideia. Uma última ideia para esta comparação. Refiro-me ao baixo nível que Lionel está mostrando nos últimos meses, antes do Mundial do Brasil. Neste ano na vida de Messi, tão habituada aos “sim”, acumularam-se alguns “não”. Não está jogando bem. Não ganhou a Bola de Ouro. Não pôde ganhar a Liga dos Campeões. Não conseguiu ganhar o campeonato espanhol.
E essa ideia, em vez de me preocupar, me anima. Posso pensar – quero pensar – que Messi está tomando fôlego. Em um lado do caminho, um pouco nas sombras, ele que está tão habituado às luzes ofuscantes. Aprendendo, como só se aprende com os erros e as perdas. Aprendendo.
Dispondo-se, como aqueles heróis dos mitos que devem vencer mil perigos e se esquivar de mil dificuldades, a ocupar o centro da cena quando eles, e só eles, são capazes de corrigir um destino de derrota.
Talvez assim – e só assim – Messi possa conseguir o duplo milagre. Não só o improvável milagre de ser profeta em sua terra. Mas o outro milagre, ainda mais inverossímil, de chegar ao mesmo cume onde o aguarda o único profeta que conseguiu, na Argentina, semelhante prodígio.”
O texto de Sacheri permanece vivo porque Messi ainda busca estar lá, ali onde chegou Maradona, embora seja impossível ter o status de Diego, moldado pela bola, mas também por seu estilo de vida e suas ideias.
Mas é sempre bom não duvidar de Messi, a quem os torcedores louvaram, no Lusail, subindo e abaixando os braços, como se pedissem a benção para um monarca, um santo, por aí. E cabe aqui uma confissão: em nome da velocidade, os jornalistas começam a escrever seus textos antes mesmo do apito final. Preparava-me para um obituário em vida do 10 argentino. Foi tudo reescrito – como Messi pretende reescrever sua trajetória.
Quarta-feira, dia 30, será um grande dia – e um dos motivos é o embate entre Messi e Lewandovski. Argentina e Polônia jogam às 16h00, horário de Brasília.