Nos anos 1940, uma lei da Era Vargas vetava às mulheres a prática de esportes que, sob o filtro do preconceito, não seriam compatíveis com sua “natureza”. A norma ganhou novas tintas duas décadas depois, com a elaboração de uma lista de modalidades contraindicadas à ala feminina, entre as quais o futebol. Artigos científicos sustentavam a exclusão apoiados em conceitos sem respaldo, como o de que elas não eram talhadas para o embate físico, dado os ossos frágeis e a baixa concentração de glóbulos vermelhos, sem falar na menor “resistência nervosa”. Custou para o mundo girar: apenas em 1983 puderam entrar em campo sem travas legais, dez anos depois das europeias, que também penaram fora dos gramados.
A vagarosa marcha brasileira nesse campo acaba de receber um empurrão e tanto com a escolha do país para sediar a próxima Copa do Mundo feminina, em 2027 — oportunidade que, se bem aproveitada, tem tudo para dar visibilidade a jogadoras talentosas e atrair dinheiro para essa atividade que, para muitas, é praticada na raça. O recente movimento ocorre num caldeirão em que fervilham boas notícias para as atletas de todos os cantos do planeta, prestes a cravar uma marca histórica: pela primeira vez, vão comparecer a uma Olimpíada – a de Paris, entre 26 de julho e 11 de agosto — em número equivalente ao dos homens (veja o quadro abaixo).
No caso do Brasil, a tirar pelas vagas conquistadas até agora, elas serão a maioria. Dos 217 nomes confirmados para os Jogos, respondem por 129 — 59% entre os que vão batalhar pelas 329 medalhas (situação que já reflete a eliminação dos homens no futebol). São feitos notáveis, que se inserem no caldo das conquistas das mulheres ao longo do século XX — processo que tomou impulso com as bandeiras em prol da igualdade de gênero agitadas no fim da década de 1960. “Não dá para separar o que estamos observando nos esportes do progresso da própria sociedade”, diz Leda Maria da Costa, pesquisadora de gênero e esportes na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Antes de desembarcar com tudo em gramados, piscinas, pistas e tatames — em Paris, estarão em 100% das disputas —, elas já haviam ocupado as carteiras universitárias, diplomando-se médicas, advogadas e engenheiras. Nos esportes, no entanto, esbarraram num sólido muro, com suas bases fincadas no nascedouro dos Jogos da Era Moderna, na Grécia, em 1896 — uma estreia sem mulheres. À frente da empreitada estava o francês Barão de Coubertin (1863-1937), autor de um comentário que hoje fere ouvidos, mas àquele tempo foi recebido com naturalidade: “Impraticável, desinteressante, inestética e, não hesitamos em acrescentar, incorreta — é isso que seria uma Olimpíada com mulheres”.
Na vez de Paris, em 1900, elas eram minguadas 22 representantes, que nem sequer duelavam por medalhas. Seu prêmio eram certificados de participação. Em 1924, na mesma Cidade-Luz, foram 4% do total, o que dá a dimensão do quão relevante é o salto de hoje. Nesse percurso, um sacolejo decisivo veio do ímpeto revolucionário de uma francesa, Alice Milliat, que fundou os Jogos Mundiais Femininos nos anos 1920, um evento à parte que acabou por chamar a atenção do Comitê Olímpico Internacional (COI). Em 1936, elas enfim ganharam status de atletas olímpicas, embora só bem mais tarde, nos Jogos londrinos de 2012, uma medida concreta tenha sacudido a cena: ficou estabelecido que todas as modalidades deveriam contar com pelo menos um homem e uma mulher, dando novo gás a elas. Em Paris, o COI foi mais longe, ao definir que os dois gêneros terão direito ao mesmo quinhão de vagas — uma espécie de cota, o que faz com que os países corram atrás da equidade.
O preconceito, porém, não se dissolveu de todo, manifestando-se em muitas camadas. “Nunca imaginei que chegaríamos tão longe, mas as barreiras ainda estão presentes”, disse a VEJA Sandra Pires, que formou a vitoriosa dupla de vôlei de praia em 1996, na Olimpíada de Atlanta, com Jackie Silva, ambas donas da primeira medalha olímpica de ouro concedida a brasileiras. “Na hora da premiação, veio um recado da Federação Internacional de que deveríamos subir ao pódio de biquíni, e não de agasalho”, lembra Jackie, com um fio de tristeza. Não raro, ainda vêm à tona casos de assédio, como a repugnante cena de Luis Rubiales, presidente da Federação Espanhola de Futebol, tascando um beijo na boca não consentido na atacante Jenni Hermoso, da equipe do país. Causou indignação e custou o cargo de Rubiales — um bom sinal dos tempos. Também no bolso a desigualdade se faz sentir, com um abismo entre o que faturam homens e mulheres.
Mesmo que o cenário exija avanços, e há muita estrada pela frente, sob o prisma histórico eles já são extraordinários. Considerando que a primeira brasileira a pisar no palco olímpico foi a nadadora Maria Lenk, em 1932, e que a melhor posição obtida pelo país na banda feminina, até os anos 1960, havia sido um quarto lugar da saltadora Aída dos Santos, o que se vê agora é uma incrível virada. Hoje com 87 anos, Aída lembra que os olhares atravessados ao optar pelo atletismo começavam em casa. “Meu pai chegou a bater em mim porque eu saía escondido para poder competir”, contou a VEJA. Nos Jogos de Tóquio, em 1964, Aída foi a única integrante feminina de toda a delegação brasileira. O torneio que se avizinha é capítulo de um momento de muito mais público e com mais dinheiro girando para elas, o que faz esportistas como Ana Marcela Cunha, que vai encarar as revoltas águas do Rio Sena em busca do segundo ouro consecutivo na maratona aquática, pontuar: “A equidade de gêneros é um marco a ser celebrado no esporte”. Em Paris, a voz e a vez são delas.
Com reportagem de Caio Saad
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894