Os países africanos, especialmente os da porção oriental, como o Quênia e a Etiópia, sempre foram fonte inesgotável de corredores de longa distância — as clássicas provas de 5 000 metros, 10 000 metros e a maratona. Há exceções, claro, e alguns dos atletas vencedores dessa região do planeta são também velocistas. Atribui-se a infindável resistência ao treinamento em altitude, acima de 2 400 metros. Há quem ponha o sucesso na conta de um alimento, o ugali, mingau duro de farinha de trigo rico em carboidratos. Ou então pode ser apenas o hábito já histórico — como o de meninos brasileiros que jogam futebol de meia nas ruas do país. Contudo, como excepcionalidade que confirma a regra, acaba de despontar um dos homens mais rápidos do mundo em Botsuana, país no sul do continente.
Convém guardar o nome, porque será repetido à exaustão nos próximos dois anos, a caminho da Olimpíada de Paris, em 2024: Letsile Tebogo. Ele tem apenas 19 anos e acaba de cravar 9s91 nos 100 metros rasos, a mãe de todas as provas — é tempo apenas 15 centésimos acima do campeão mundial adulto, o americano Fred Kerley. Direto ao ponto: nessa idade, nenhum ser humano correu tão rápido. Nem mesmo Usain Bolt — o jamaicano tinha 22 anos quando baixou a mítica marca dos 10s. Fez 9s69 nos Jogos de Pequim e, no ano seguinte, no Mundial de Atletismo em Berlim, espantou a Via Láctea inteira com o tempo de 9s58, o atual recorde mundial, assombroso e inatingível (veja no quadro). “É um atleta fora da curva, que muito em breve pode se tornar referência”, disse a VEJA o brasileiro Robson Caetano, medalha de bronze nos 200 metros em 1988, em Seul, e bronze em Atlanta, em 1996, hoje reputado palestrante. “Não há dúvida de sua capacidade técnica, inquestionável, mas para chegar ao topo e lá se manter é preciso ter cabeça boa.”
O espanto com Tebogo — fenômeno também nos 200 metros, a prova irmã dos 100 — é muito bem-vindo. Enfim pode estar aparecendo o sucessor de Bolt, se é que isso é possível. Não por acaso, a Federação Internacional de Atletismo postou um vídeo comparando as atuações de Tebogo e Bolt em provas de 200 metros separadas por vinte anos. Vê-se o mítico campeão aos 15 anos, concluindo uma disputa em Kingston, na Jamaica, em 2002, no tempo de 20s61. Tebogo, agora, vence sua bateria em 19s98 no Campeonato Mundial sub-20, em Cali, na Colômbia. Ambos celebram a vitória 20 metros antes da linha de chegada, ao sorrir e até reduzir a toada. “Se alguém entendeu minha postura como desrespeito, sinto muito”, disse Tebogo. “Eu vi os fãs e quis lembrar o que o Bolt fazia no seu tempo. Ele é meu ídolo, a pessoa em quem me espelho.”
O prodígio, o novo Bolt, alimenta uma discussão: qual é o limite para a velocidade humana? Posto de outra maneira: dá para correr abaixo da marca de Bolt, os tais 9s58 estabelecidos há quase quinze anos em Berlim? Estudo realizado pela Universidade Stanford, nos Estados Unidos, mostra que, entre os homens, se pode alcançar 9s48, no máximo. Entre as mulheres, 10s39 (o recorde mundial feminino é de 10s49, estabelecido pela americana Florence Griffith-Joyner em 1988, sobre quem sempre pairou a sombra do doping). “As marcas são feitas para ser alcançadas, mas evidentemente os avanços pressupõem melhora nos equipamentos esportivos e nos conhecimentos científicos”, diz Caetano. Um olhar retrospectivo é sempre bom. Imaginava-se que o recorde mundial dos 200 metros, do americano Michael Johnson, de 19s32, anotado em 1996, fosse durar pelo menos três décadas — mas não, porque Bolt o pulverizou doze anos depois, baixando para 19s30 e, logo em seguida, para 19s19. Mas insista-se: era Bolt, e não há outro igual. Contudo Tebogo parece ser um raio da mesma estirpe, afeito a acelerar o tempo e deixar a humanidade boquiaberta.
Publicado em VEJA de 17 de agosto de 2022, edição nº 2802