O espírito olímpico viu-se despertar em 1896, quando 241 atletas de 14 nações distintas cruzaram as quadras de Atenas, na Grécia. Mas a cidade, nomeada em referência à deusa da sabedoria e da Justiça, parecia um retrato pintado da desigualdade: não havia se quer uma mulher entre os competidores. A exclusão estava arraigada na crença machista de que o corpo feminino não era afeito a esportes — artigos científicos indicavam que elas não aguentariam o embate físico e apresentavam uma menor “resistência nervosa”.
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Quem vê Rebeca Andrade, Bia Haddad, Rayssa Leal, Mayra Aguiar, Bia Ferreira prestes a ofuscar o brilho da Cidade Luz, nos Jogos de Paris, não imagina que ocupar tão importante espaço foi epopeia daquelas de tirar suor até das divindades do Olimpo. Para o Brasil, o percurso foi marcado por batidas na trave até a conquista da primeira medalha de ouro feminina, com Sandra Pires e Jackie Silva, no vôlei de praia.
Antes delas, veio Aída dos Santos, única representante feminina nos Jogos de Tóquio, em 1964. Ficou faltando apoio. Aída viajou para o outro lado do mundo sem a companhia do treinador e teve de lidar com toda sorte de discriminação. Sozinha, ainda conseguiu um resultado espetacular, entrando para o rol da história verde-amarela, no quarto lugar no salto em altura.
Foram mais de três décadas até a próxima grande chance — essa, aí sim, bem-sucedida. Em Atlanta 1996, a final do vôlei de praia foi de tirar o fôlego em meio à certeza de que o ouro viria para mãos brasileiras de qualquer forma, já ambas as duplas que entraram na quadra de areia eram canarinhas: Jackie Silva e Sandra Pires contra Adriana Samuel e Mônica Rodrigues. “Eu não conseguia me concentrar direito naquela final porque sabia que já era medalhista, aquilo me contagiou”, relembra Pires a VEJA.
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O resultado foi favorável para Silva e Pires, que levaram para casa a inédita medalha dourada para as mulheres do país. “Sinto que cumpri a missão, só não tinha noção do peso daquela conquista”, disse ela, acrescentando: “fui entender o significado quando desfilamos no carro de bombeiros no Rio de Janeiro e mulheres paravam o trânsito, saíam do carro pulando e nos agradeciam por representá-las”. Mas, ainda em Atlanta, o sabor da vitória foi acompanhado do amargor do machismo.
“Na hora da premiação, veio uma mensagem da Federação Internacional de Voleibol para que nós subíssemos ao pódio de biquíni, não de agasalho como era de costume”, conta Jackie a VEJA. “É desse lugar [de desigualdade] que estamos falando. Foi a primeira medalha de ouro, sim, mas era como se colocassem nossos corpos a frente do resultado.”
Jackie: ‘O esporte é muito machista’
Os problemas com os uniformes, no entanto, não ficaram restritos à década de 1990. Em abril deste ano, a Nike viu-se mergulhada em uma torrente de ávidas críticas após a divulgação do collant desenhado especialmente para a Olimpíada de Paris. O motivo: era cavado, e muito. Jackie ressalta que o esporte, apesar dos avanços conquistados a duras penas pela ala feminina, é um ambiente marcado pelo preconceito.
“O esporte é muito machista. O esporte no Brasil, então, é um absurdo. Muitas vezes, são homens que dirigem, são treinadores homens, preparadores físicos são homens. Acho que as únicas mulheres que aparecem são as psicólogas, para cuidar da cabeça da mulher”, afirma ela. “No Brasil, as mulheres estão sempre querendo ocupar esse lugar de igualdade nos salários, no reconhecimento.”
As participantes da Copa do Mundo Feminina de 2023 estão aí para comprovar a escassez. Números da emissora americana CNN revelaram que elas receberam, em média, 25 centavos para cada dólar ganho pelos homens na Copa do Mundo no Catar. O assédio também insiste em entrar em campo. Nem nos momentos de glória, elas estão a salvo — o presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, Luis Rubiales, sentiu-se confortável para dar um beijo não consentido na atacante Jenni Hermoso ao vivo e a cores.
Sandra: ‘Nunca imaginei ver essa igualdade’
Dados do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) obtidos por VEJA mostram que o percentual de treinadoras na Olimpíadas de Tóquio esteve nos baixíssimos 12% — número que há expectativas de ser ampliado em Paris. A capital francesa também testemunhará um recorde histórico: pela primeira vez, haverá equidade no número de atletas enviados. Houve, ainda, avanços em relação a postos de liderança ocupados por mulheres. Segundo o COB, elas estão em 33 dos 62 cargos de chefia. Ou seja, agora estão em maioria e buscam combater o machismo enraizado no meio.
“Vemos mudanças acontecendo, mas são passos tímidos”, pondera Jackie. “Ao mesmo tempo, é um momento muito simbólico. Temos aí a Rebeca que é sensacional, que carrega uma representatividade. Também Beatriz Ferreira, do boxe. Aquela ali é uma guerreira, em um esporte extremamente machista. São altas chances de medalhas.”
“Infelizmente, ainda existe esse fato de que presidentes de Federação são, sim, maioria homens. Então, é legal também ter mais mulheres assumindo postos de destaque. Porque, por ser mulher, teria mais a sensibilidade para entender a outra, compreender as nossas necessidades. E, assim, a gente vai mudando o mundo”, acrescenta Sandra. “Nunca imaginei que veria essa igualdade em Paris, mas é preciso avançar mais”.