Bati a mão na borda da piscina e olhei para o painel. A diferença de tempo entre os atletas em uma prova de natação como aquela, os 50 metros borboleta, é tão apertada que não tem outra forma de saber o resultado. E meu nome estava gravado lá, no segundo lugar, a apenas dois décimos do primeiro colocado. Nunca imaginei que, aos 42 anos, fosse manter o vigor físico e ir tão longe, conquistando a medalha de prata no Mundial de Budapeste. O americano Caeleb Dressel, o maior nadador da atualidade, sucessor de Michael Phelps, na mesma hora me chamou para sua raia e disse, espontâneo e generoso: “Você é uma lenda”. Fiquei até sem jeito e agradeci a deferência. Sei que seguir até hoje competindo em alto nível, duelando com meu próprio corpo, tem a ver com minha trajetória incomum no mundo dos esportes.
Comecei a nadar na infância, por influência do meu pai, dono de uma escola de mergulho em Ribeirão Preto. A cidade é tão quente que não saía da piscina. Participei de torneios regionais, mas sem grande compromisso. Dividia minha preferência com outros esportes: basquete, vôlei e lutas. Ao contrário do que ocorre com muitos atletas de elevada performance, só encarei para valer as competições quando estava prestes a ingressar na universidade. Decidi pela carreira de fisioterapia e minha boa atuação como nadador me rendeu uma bolsa de estudos. Só aí me inscrevi em um campeonato absoluto, como se diz, no qual todos brigam pela melhor marca, não importando a idade. Me classifiquei para a final dos 50 metros nado livre, ao lado de alguns nomes do panteão da natação brasileira, como os medalhistas olímpicos Gustavo Borges e Fernando Scherer, o Xuxa.
Ali, aos 18 anos, caiu a ficha: entendi que poderia ser profissional. E passei a receber propostas variadas de bons clubes brasileiros e até de universidades americanas. Escolhi o Flamengo, onde estavam os melhores atletas do Brasil. Lá, faturei os 50 metros nado livre, à frente de Borges e Edvaldo Valério, nadadores que tinham acabado de voltar da Olimpíada de Sydney. Um jornal estampou: “O golfinho derrotou os tubarões”. Recebi então mais convites e treinei em Santos, Buenos Aires, São Paulo e Alabama, nos Estados Unidos. Nunca deixei de estudar. Foi difícil terminar a faculdade e ainda mais complicado conciliar tudo com a pesada rotina de treinamento. O conhecimento que acumulei ao me dedicar à fisioterapia, porém, foi de um valor inestimável — é o que explica minha longevidade nas piscinas. Decifrar os mecanismos do corpo me fez evitar lesões, testar meus limites com segurança e compreender o tipo de treino mais adequado para mim. Aprendi, sobretudo, a desenvolver resiliência.
Foi com essa experiência que desembarquei em junho na Hungria para o Mundial. As provas estavam disputadas, com tempos abaixo do normal. Nas classificatórias, fiquei entre os últimos. Saía da piscina semimorto de tanto forçar a braçada. Olhava para os moleques e pensava que a hora da aposentadoria havia chegado. Até que resolvi mudar de estratégia: manter os quadris acima da linha d’água e forçar no final. Funcionou. Após a celebração, treinadores de outras equipes começaram a postar minha foto ao lado da figura de um bode — em inglês, goat. Tinha uma razão. A palavra é também um acrônimo para Greatest of All Times (O Maior de Todos os Tempos), uma homenagem que me emociona. Conquistei mais de quatrocentas medalhas, participei de olimpíadas e sou, ainda hoje, recordista mundial nos 50 metros borboleta em piscina curta e sul-americano na piscina longa. O sonho do pódio olímpico não veio, mas não tenho do que me queixar, não mesmo. Pretendo participar de um último campeonato e me tornar empresário, treinando futuros campeões. Penduro a sunga e os óculos com a certeza de que entreguei tudo o que tinha para a natação e que idade não é obstáculo — é desafio.
Nicholas Santos em depoimento dado a Ricardo Ferraz
Publicado em VEJA de 13 de julho de 2022, edição nº 2797