A história do tênis brasileiro é feita de personagens fora da curva. Maria Esther Bueno (1939-2018), com dezenove títulos em torneios do Grand Slam, foi a maior de todas. Gustavo Kuerten, três vezes vitorioso em Roland Garros, na França, também está no panteão dos gigantes. Ambos foram estrelas incomparáveis, que cravaram seus nomes para a posteridade, assim como Pelé no futebol, Ayrton Senna na F1 e Eder Jofre no boxe.
Nas últimas semanas, outro talento despontou nas quadras lendárias e charmosas de saibro do campeonato francês, um dos mais relevantes do calendário. A paulistana Beatriz Haddad Maia atingiu um feito extraordinário ao alcançar a semifinal do torneio. Bia, como gosta de ser chamada, perdeu para a número 1 do mundo, a polonesa Iga Swiatek, na quinta-feira 8, mas pouco importa: seu junho parisiense está marcado para sempre.
Bia, sob diversos aspectos, pode ser apontada como um fenômeno tardio do tênis. Maria Esther Bueno ganhou seus primeiros Grand Slams individuais em 1959 (Wimbledon e US Open), quando tinha só 19 anos. Guga faturou Roland Garros aos 20. A nova estrela do esporte brasileiro tem 27. Isso, obviamente, não tira o brilho de sua fantástica trajetória na França, mas ela não é — nem será — Maria Esther Bueno ou Guga. Ainda assim, merece todos os aplausos. “É decisivo notar que, mesmo com os obstáculos, ela chegou a um nível de excelência que poucos alcançaram”, disse a VEJA o ex-jogador e ex-técnico de tênis Carlos Alberto Kirmayr. “E tem tempo e condições para conquistar aquilo que vem perseguindo.”
Afinal, que obstáculos foram esses? Ao longo da carreira, a tenista precisou passar por quatro delicadas cirurgias — nos dedos, no punho, nos ombros e nas costas — em decorrência de lesões causadas pelo treinamento intenso. O maior dos desafios, contudo, veio em 2019, quando sofreu uma suspensão por doping. Ela só pôde voltar a treinar dez meses depois, após provar que o teste positivo ocorreu por uma reação cruzada com um dos suplementos que tomava. “Mais cedo, ela já despontava para ser uma grande jogadora, mas infelizmente teve esses problemas”, disse a VEJA o comentarista e ex-tenista Fernando Melingeni, que em 1999 chegou à semifinal de Roland Garros. “Se olharmos os tenistas da América do Sul, a maioria demora para amadurecer em comparação com os europeus e americanos.” Portanto, talvez Bia ainda esteja longe de seu pleno desabrochar.
Ela começou cedo no tênis. Empunhou uma raquete pela primeira vez aos 4 anos e, desde então, nunca mais abandonou as quadras. Ainda jovem, começou a participar de competições, nas quais sempre surpreendeu pelo talento precoce. “Mesmo com os mais velhos, ela ganhava os jogos”, disse a VEJA Telma Haddad, tia da atleta. A dedicação era tamanha que, dos 14 aos 18 anos, foi treinar com Larri Passos, conhecido por ter sido um dos mentores de Guga. “Aos 15, ela estava voando”, disse Passos a VEJA. “Já era muito bem formada tecnicamente.” Para ele, Bia jogará em alto nível até os 35 anos.
De forma geral, o tênis moderno se caracteriza por exigir dos atletas força, potência muscular, resistência e equilíbrio emocional — em maior ou menor grau, Bia detém todos esses atributos. A excelência física da tenista — ela tem 1,85 metro —, somada à solidez psicológica, tem chamado a atenção. “A maturidade em que se encontra, aliada às dificuldades enfrentadas em sua carreira, deram equilíbrio emocional e força mental à atleta”, disse a VEJA Fernando Torres, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte. Até onde Bia poderá chegar? A julgar pela obstinação da tenista, incansável, novas conquistas virão por aí.
Publicado em VEJA de 14 de Junho de 2023, edição nº 2845