Quando subi no pódio olímpico e recebi a medalha de ouro, depois de vinte anos de tatame, fui tomado por uma mescla de emoções. Lembrei de quando tinha 12, 13 anos e ficava simulando aquele momento no chuveiro: comemorava debaixo d’água e imaginava as palavras que diria aos repórteres. O sonho de fazer parte de um panteão tão especial esteve comigo o tempo todo. Então a alegria, lá em Barcelona, em 1992, foi de uma intensidade única. Mas, ao olhar em volta, faltava meu irmão, que havia tirado a própria vida um ano antes, e bateu uma tristeza. Mesmo com aquele vazio, já com a medalha no peito, pensei: “Conseguimos!”. Ricardo, que era o mais velho, também judoca, foi essencial na minha determinação de ir longe no esporte, e sua inesperada partida me ensinou de forma dura que há coisas que a gente não controla. Em relação ao que está na minha mão, aí, sim, cuido de forma obsessiva. E vem sendo assim agora, no papel de chefe da missão olímpica brasileira em Paris.
Não é fácil deixar a vida de atleta após tantas conquistas. Aquilo tem um glamour e, de repente, você se vê sem os holofotes. Mas consegui me reinventar sem sair da arena esportiva. Treinei muita gente boa e fui comentarista em várias emissoras — função, aliás, muito mais fácil do que a da pessoa que está sofrendo para se superar numa competição. Mais tarde, engatei na área de gestão, numa fundação de apoio ao esporte em Santos, minha cidade, e depois na prefeitura de São Paulo e no Ministério do Esporte, onde atuei em várias frentes, até chegar ao Comitê Olímpico do Brasil (COB). Sou hoje diretor-geral. Se me chamam de cartola, nem perco tempo em responder. É pejorativo. O que faço todos os dias é cuidar para que esses profissionais tenham boas condições para trabalhar. Eu não tive isso. A situação no meu tempo era tão precária que até o quimono com o qual lutei em Barcelona era emprestado.
A perda do meu irmão é um divisor de águas em minha trajetória. Quando ele se foi, sabia que deveria mergulhar fundo em algo que me fizesse olhar para a frente. E o caminho do judô, que abracei desde os 4 anos por recomendação do pediatra — fui um menino agitado que precisava queimar energia —, era natural. Sempre fui sério, disciplinado no esporte e treinei como nunca para a Olimpíada, com ele em pensamento. Ricardo, que chegou a ir aos Jogos de Seul, em 1988, era quatro anos mais velho. Quando morreu, tinha 27, e eu, 23. Nosso biotipo era o mesmo, usávamos até as mesmas roupas. Treinávamos outros atletas e, no dia em que o perdemos, ele me ligou dizendo que não iria ao campeonato onde eu já estava. “Estou cansado”, falou. Pouco depois, veio a notícia: ele decidiu não estar mais entre nós. Mas o que guardo mesmo no peito são nossas conversas, nossa intimidade e a ideia de que precisamos fazer o hoje valer a pena.
É com esse espírito que encaro minha nova missão, em Paris. Eu, que sempre briguei por melhores condições para os atletas, e até parei de participar de grandes campeonatos por um tempo, como forma de protesto, continuo caminhando nessa direção. Nos Jogos, ficarei na Vila Olímpica, zelando por uma comitiva de 650 pessoas, 270 delas esportistas. O plano é fazer uma reunião diária às 6 da manhã para organizar toda a logística em detalhe. Minha filosofia é a de que o atleta deve contar com a melhor estrutura para poder alcançar o ápice de seu desempenho. Médicos, fisioterapeutas, nutricionistas — tudo precisa funcionar como um relógio. Eu, que passei anos praticando sem nada disso, sei bem a importância que tem. Estou gostando do novo trabalho, apesar das dificuldades que envolve. A Torre Eiffel, desta vez, vou ver só de longe mesmo. Mas sinto que ganhei outra oportunidade de ouro para escrever mais uma página da minha história.
Rogério Sampaio em depoimento a Monica Weinberg
Publicado em VEJA de 5 de julho de 2024, edição nº 2900