Um olhar histórico é sempre didático. Em 15 de dezembro de 2019, o atacante ucraniano Roman Zozulya, do time espanhol Albacete, ouviu a torcida adversária do Rayo Vallecano gritar, em alto e bom som, barbaridades como “puto nazista”. No intervalo da partida, os jogadores das duas equipes não voltaram a campo e o árbitro suspendeu o jogo. Inédita na LaLiga, como é conhecido o campeonato de futebol da Espanha, a decisão foi elogiada publicamente pela entidade. No último 21 de maio, o craque brasileiro do Real Madrid Vinicius Jr. viveu situação parecida. Dezenas, talvez centenas e até mais, de torcedores do Valencia despejaram uma série de insultos racistas contra Vini — é assim que o chamam os fãs do Real. Mas Vini, ao contrário de Zozulya, não se calou. Com justa indignação, triste e incomodado, ele apontou o dedo para seus algozes e enfrentou, de face erguida, corajoso, os idiotas que o atacavam. Uma confusão se formou entre os atletas dos dois times e, então, o brasileiro foi expulso de campo. A partida, àquela altura já manchada para sempre, prosseguiu, para certamente entrar nos anais da infâmia esportiva, como ponto de inflexão.
Com quase três anos e meio de intervalo, a principal diferença entre os dois episódios que marcaram profundamente o futebol espanhol está na cor da pele das vítimas. Zozulya é branco. Vini Jr., preto. A dissonância nas respostas é o retrato inconteste do racismo que emporcalha não apenas o universo do futebol, mas toda a sociedade. O caso do atacante ucraniano teve um tratamento expedito, mesmo sendo ele suspeito de simpatizar com grupos paramilitares de extrema direita. Por sua vez, a reação por parte das autoridades espanholas para o crime cometido em Valência foi inacreditavelmente lenta, repleta de senões absurdos e retratações vergonhosas. Um exemplo flagrante foi o presidente de LaLiga, Javier Tebas Medrano, ex-integrante da agremiação fascista Fuerza Nueva, que teve o atrevimento de criticar o brasileiro.
O que Medrano e os racistas provavelmente não sabiam é que Vini Jr. não costuma se dar por vencido. “O que falta para criminalizarem essas pessoas?”, escreveu no Twitter. “E punirem esportivamente os clubes? Por que os patrocinadores não cobram a La Liga? As televisões não se incomodam de transmitir essa barbárie a cada fim de semana?” As respostas para essas perguntas permanecem em aberto, mas é certo que o jogador não sossegará enquanto o racismo continuar arruinando o futebol. Mais do que isso: não há hoje no mundo nenhuma voz tão vigorosa — e tão engajada — na luta contra o racismo. “Quero, sobretudo, inspirar e trazer mais luz à nova luta”, disse o camisa 20 merengue.
Se há algo de positivo a extrair do episódio, é a extraordinária rede de apoio que o brasileiro recebeu. A onda de indignação veio de todos os lados, do presidente Lula ao premiê da Espanha, Pedro Sánchez, do compositor Chico Buarque ao chefão da Fifa, o suíço-italiano Gianni Infantino. O governo brasileiro foi firme na defesa de seu filho ilustre. “O silêncio das autoridades, dos patrocinadores, de parte da imprensa, dos outros clubes e da liga espanhola é um silêncio conivente com o racismo”, disse Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos, ele também negro. “Esperamos que essas manifestações signifiquem efetivamente um projeto de Estado para mudar não só o futebol, mas outras ações sociais permeadas pelo racismo”, afirmou a VEJA Alessandra Benedito, professora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), de São Paulo.
Há muito a ser feito. O racismo está por toda parte e agride pretas e pretos cotidianamente. “Não foi a primeira vez, nem a segunda, nem a terceira”, afirmou Vini Jr. Ele está coberto de razão. Desde 2021, há registro de pelo menos nove incidentes semelhantes envolvendo o atacante. Antes dele, as agressões verbais contra atletas brasileiros se empilham. Na década de 1990, o lateral-esquerdo Roberto Carlos, que também passou pelo Real Madrid, foi alvo dos intolerantes, dentro e fora de campo, e chegou a ter seu carro pichado com a palavra “macaco”. Ronaldo Fenômeno, Rivaldo e Daniel Alves receberam tratamentos parecidos. Alves, quando jogava pelo Barcelona, chegou a comer, em gesto irônico, uma banana que foi arremessada das arquibancadas em sua direção pela torcida adversária.
Engana-se quem diz que apenas o futebol oferece palanque para os criminosos. Em fevereiro, Yago Mateus, armador da seleção brasileira de basquete, foi chamado de “macaco” durante uma partida da Eurocopa. Seu time, o alemão Ratiopharm Ulm, enfrentava o espanhol Joventut Badalona. “Nunca vou superar”, disse Yago a VEJA. “Quando aconteceu com o Vini, fiquei com muita raiva e lembrei de tudo o que passei. Não desejo isso para ninguém.” No futebol, contudo, os vômitos racistas certamente reverberam mais, o que se deve sobretudo ao alcance global do esporte mais popular do planeta. De todo modo, é preciso dizer que as multidões nos estádios, talvez unidas pela certeza da impunidade, são pródigas em agressões — os gritos homofóbicos comuns nas arquibancadas brasileiras estão aí para comprovar essa afirmação.
O racismo nos gramados é tão antigo quanto o próprio futebol. Embora o esporte tenha chegado ao Brasil em 1895, foi apenas três décadas depois que os negros passaram a ser aceitos pelos clubes. Isso se deve sobretudo ao Vasco da Gama, que publicou em 1924 uma carta que defendia o fim da discriminação racial e social. A partir daí, vários clubes passaram a aceitar negros. O resto é história, contada principalmente por gênios pretos como Leônidas da Silva, Didi, Zizinho e Domingos da Guia, entre tantos outros. Pelé, o maior de todos, foi inúmeras vezes alvo da fúria de canalhas racistas, mas dizia que preferia responder dentro de campo com seus gols e dribles extraordinários. Eram outros tempos, em que a questão racial permanecia negligenciada. Ainda assim, Pelé se tornou um símbolo da afirmação negra e, por extensão, da grita contra o preconceito, ainda que nunca tivesse levantado bandeiras.
Na quarta-feira 24, Vini Jr. não entrou em campo pelo Real Madrid contra o Rayo Vallecano, pelo Campeonato Espanhol. Mas estava presente no estádio Santiago Bernabéu para presenciar a homenagem do clube e dos jogadores que vestiam a camiseta com seu nome. Assim, ele entra para uma galeria que tem, entre eles, o boxeador Muhammad Ali, uma incansável voz contra o preconceito, o mito do basquete LeBron James, que se ajoelhou em protesto pelo assassinato do negro George Floyd por policiais, e o piloto de Fórmula 1 Lewis Hamilton. “Gostamos de fingir que o esporte é um universo descolado da política, mas não é”, disse a VEJA Kauê Lopes dos Santos, professor da Unicamp e pesquisador visitante da britânica London School of Economics and Political Science. “Vinicius Jr. é uma figura de extrema relevância, inclusive para a mobilização de outros jogadores.”
Em essência, seu grito contra o racismo é, sim, um gesto político. Assim como foi o da americana Rosa Parks, que em 1955 se recusou a ceder seu lugar no ônibus para um homem branco, tornando-se um símbolo do movimento pelos direitos civis. Ao não se submeter aos horrores dos intransigentes, Vinicius Jr., um jovem de 22 anos nascido em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, entra para o time dos gigantes que lutam para mudar o mundo. No corpo, ele tatuou uma mensagem: “Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho dos olhos, haverá guerra.” Que o brilho dos olhos dele e a força de suas palavras ajudem a destruir o racismo.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2023, edição nº 2843