O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.
Qual a sensação da senhora depois da primeira visita ao centro do Rio de Janeiro? A cidade do Rio é uma cidade mais europeia do que Bahia ou Pernambuco. As casas são de três ou quatro pavimentos, com tetos salientes, toleravelmente belas. As ruas são estreitas, pouco mais largas do que o Corso, em Roma.
E para além da arquitetura e do urbanismo, como é a vida cotidiana? Há na cidade um ar de pressa e atividade bem agradável aos nossos olhos europeus. No entanto, todos os portugueses fazem a sesta após o jantar. Os negros, tanto livres quanto escravos, parecem alegres e felizes no trabalho. Há tanta procura deles que se encontram em pleno emprego e têm, naturalmente, boa paga.
As mulheres, sobretudo, parecem ter chamado sua atenção. Por quê? Nas mulheres bem-vestidas que vi à noite tive grande dificuldade em reconhecer as desmazeladas da manhã de outro dia. As senhoras estavam todas vestidas à moda francesa: corpete, fichu, enfeites, tudo estava bem, elegante mesmo, e havia uma grande exibição de joias. As inglesas, porém, ainda que quase de segunda categoria, ou mesmo de nobreza colonial, arrebataram o prêmio de beleza e da graça, porque afinal os vestuários, ainda que elegantes, quando não são usados habitualmente, não fazem senão embaraçar e estorvar os movimentos espontâneos e, como nota mademoiselle Clairon (atriz e escritora francesa), “para poder representar de fidalga em público é preciso que a mulher o seja na vida privada”.
A senhora acompanhou de perto o anúncio de dom Pedro em 9 de janeiro, o Dia do Fico. Agora que a independência está encaminhada, o que dizer ao povo? Agora é preciso só recomendar-vos a União e Tranquilidade! Expressões realmente sublimes e que contêm toda a filosofia política. Sem a União não poderemos ser fortes, sem a força não poderemos determinar a tranquilidade. Portugueses. Cidadãos. Tendes um príncipe que vos fala com gentileza de suas próprias funções; que vos convida a unirmo-nos com ele em torno à Constituição. Cumpri vossos deveres. Atendei à amável exortação de vosso Augusto Príncipe, mas em compensação dizei-lhe: Senhor, energia e vigilância. Energia para promover o bem. Vigilância para evitar o mal.
Quais efeitos a senhora notou depois do “Fico” e que ainda hoje parecem ecoar pelas ruas do Rio de Janeiro? Os habitantes em geral, mas especialmente os comerciantes estrangeiros, estão bem satisfeitos por ver as tropas de Lisboa despedidas, porque por muito tempo foram tiranicamente brutais com os estrangeiros, com os negros e, não raramente, com os próprios brasileiros, e nas muitas semanas passadas a arrogância delas foi revoltante tanto com o príncipe quanto com o povo. Há caras alegres e corações não menos alegres.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805