O texto a seguir faz parte da edição especial de VEJA em torno dos 200 anos da independência. A ideia é tratar as notícias como seriam publicadas naquela semana de 7 de setembro de 1822 – tudo o que viria a ocorrer depois, portanto, ainda não aconteceu. É um passeio histórico ao cotidiano de dois séculos atrás.
A boa-nova da independência encontra o Brasil em um momento difícil de suas finanças. Os cofres do país, é sabido, estão vazios desde o ano passado, quando dom João voltou a Portugal levando todo o ouro e diamantes depositados no Banco do Brasil. Depauperado de reservas, o governo de dom Pedro tem sido obrigado pelas circunstâncias políticas a gastar o dobro do que coleta em impostos. Está espetacularmente inadimplente, portanto. O príncipe tem sido aconselhado a resolver a situação com um grande empréstimo de bancos ingleses, e está inclinado a mover-se nessa direção. Isso significa que o Brasil começará sua vida de nação independente gastando duas vezes mais do que arrecada e cobrindo o buraco com dinheiro caríssimo, tomado a juros. Não é bom presságio.
Por grave que seja, entretanto, o problema financeiro não é o pior que aflige o Brasil. Nossa doença mais profunda pode ser resumida numa cena corriqueira: os homens e mulheres que desfilam em liteiras nas ruas enlameadas do Rio de Janeiro, carregados por escravos de origem africana. Perfeitamente natural entre nós, esse fato salta aos olhos do mundo como aberração. Os estrangeiros que visitam nossa capital perguntam se a elite brasileira é incapaz de caminhar ou de calçar suas ruas. Os homens e mulheres escravizados trabalham como agricultores, pescadores, barbeiros, comerciantes e artesãos. Realizam todo o trabalho doméstico. Na verdade, não há o que os negros não façam, uma vez que os brancos não fazem nada. O trabalho, afinal, é uma forma de desonra para os 40% da população brasileira de origem europeia. Enquanto o Velho Continente arregaça as mangas e implementa a revolução do vapor, transformando oficinas em fábricas e artesãos em trabalhadores assalariados, o Brasil se petrifica em formas de viver que não criam riqueza nem admitem prosperidade. Mais de mil anos depois da queda de Roma, ainda somos uma sociedade de proprietários indolentes, mantida em berço esplêndido pelo suor dos cativos.
Os historiadores do futuro perceberão que, neste momento crucial da independência, decide-se também a feição que tomará a vida no Brasil. Há, de um lado, como quer o ministro José Bonifácio de Andrada, a opção de encerrar de uma vez por todas a escravidão, transformando em cidadãos instruídos e pequenos proprietários as centenas de milhares de brasileiros cujas origens remontam à África. Não é um caminho fácil ou livre de acidentes, mas por meio dele se fará uma nação normal. A outra opção é persistir no tráfico de seres humanos e na transformação de homens e mulheres sequestrados em mercadoria no Cais do Valongo. Essa decisão manterá o Brasil na condição de pária internacional e lançará as bases de uma sociedade atrasada, violenta e intrinsecamente corrupta. Como pode prosperar um país em que mais da metade da população não tem renda, propriedade nem estímulo a trabalhar além da chibata? Qual o futuro de uma nação em que o principal patrimônio das famílias não se mede em terras, títulos ou moeda sonante, mas em número de “peças” humanas? Talvez os escravocratas brasileiros entendem melhor a origem da riqueza das nações do que o filósofo escocês Adam Smith, que escreveu: “A experiência de todas as épocas e nações demonstra que o trabalho feito pelos escravos, embora pareça custar apenas sua manutenção, é no final o mais caro de todos”.
Sempre moralmente inaceitável, a escravidão não faz mais sentido econômico no século XIX, a começar pelo tráfico. Calcula-se que a lucratividade média na captura, transporte e venda de seres humanos esteja hoje em torno de 19,2%, enquanto uma fazenda de café — a nova estrela em ascensão da agricultura mundial — oferece rendimento anual de 15%. Por 4 pontos porcentuais de lucro adicional valeria a pena participar de um comércio desumano e incerto, sujeito à perseguição da frota britânica? No Rio de Janeiro se dá como certo que a Inglaterra exigirá o fim do tráfico negreiro como condição ao reconhecimento do Brasil como nação independente. Ainda que as novas autoridades firmem esse compromisso da boca para fora, apenas para aplacar os britânicos — “é para inglês ver”, já diz o povo, em sua galhofeira sabedoria —, a existência de uma lei brasileira contra o comércio de escravos transformará o uso dessa força de trabalho em ato ilegal, sujeito a sanções e indenizações. Os filhos e netos dos escravos exigirão dos filhos e netos de seus senhores as reparações que o nosso tempo for incapaz de conceder.
Os defensores da escravidão, que ainda são muitos e poderosos entre nós, repetem que o fim do cativeiro tornaria o Brasil inviável, por falta de mão de obra. Mas esses mesmos senhores — em geral proprietários de terras — apoiam os projetos oficiais de importação de trabalhadores da Europa. Os primeiros imigrantes já começam a chegar da Suíça para Nova Friburgo, na província do Rio de Janeiro. É provável que esse número cresça com o passar dos anos, modificando a paisagem humana do Brasil. Por que não oferecer aos africanos e seus descendentes as mesmas condições de propriedade e trabalho que são oferecidas aos europeus e suas famílias? Sob qualquer critério de justiça, eles fizeram por merecer. Adicionalmente, os engenhos de cana do Nordeste e as plantações de café de São Paulo talvez andassem melhor em mãos de gente remunerada, sejam elas brancas ou pretas, desde que tenham incentivo para dar o melhor de si.
O ministro Bonifácio, entre outros brasileiros ilustres, tem repetido que a escravidão atrapalha o aperfeiçoamento das técnicas agrícolas, que ela desperdiça os recursos naturais e incentiva o desinteresse e a preguiça dos trabalhadores, quando não a franca hostilidade aos senhores. Há de haver uma razão para que a engenhosidade industrial floresça na Europa e nos estados da América do Norte onde não há escravidão, mas não se manifeste entre nós. Onde há escravos que fazem tudo de graça, qual o incentivo para inventar a máquina a vapor?
Além de questões morais e econômicas, a escravidão projeta sobre o Brasil uma ameaça de outra ordem: a permanente insegurança da minoria que tem tudo e vive cercada pela maioria que não tem nada. O sangrento levante dos escravos do Haiti de 1791 deixou claro que não existe estabilidade social com cativeiro. É de se perguntar como dormem os grandes senhores baianos depois da chamada Revolta dos Alfaiates, de 1798. Ela exigia, além da liberdade a negros e mulatos, o enforcamento da população branca de Salvador. O medo dos escravos foi um fator decisivo para que os poderosos da terra abraçassem o projeto de independência com dom Pedro. Eles acreditam que o príncipe conseguirá evitar a anarquia do Haiti sem pôr em risco a escravidão e o tráfico humano, que consideram essenciais aos seus interesses. Seria tristemente irônico se dom Pedro entrasse para a história como fiador de uma instituição que ele pessoalmente abomina. “Ninguém ignora que o cancro que rói o Brasil é a escravatura. É mister extingui-la”, é o que tem dito o príncipe à boca pequena. Se ele e Bonifácio tiverem de sacrificar os princípios abolicionistas em troca de apoio político para a independência, o Brasil entrará no futuro com dois pés enterrados no passado — e sob o risco de tornar-se, para nossa eterna vergonha, uma das últimas nações do mundo a abolir a escravidão.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2022, edição especial nº 2805