Personagem foi criada por um psicólogo que acreditava na superioridade das mulheres e achava que elas deveriam liderar o mundo
“O Superman tem sua dívida com a ficção científica, o Batman, com os detetives particulares. Porém, a dívida da Mulher-Maravilha é com a utopia feminista e com a luta pelos direitos das mulheres.” Assim Jill Lepore, historiadora da Universidade de Harvard e redatora da revista New Yorker, resume a origem da personagem em livro que sai agora no país pela Best-Seller, A História Secreta da Mulher-Maravilha (tradução de Érico Assis, 480 páginas, 64,90 reais). Não é exagero: a Mulher-Maravilha, que ganha enfim uma aventura solo no cinema, em um tempo em que é relativamente fácil falar e propagar o feminismo, defende a causa desde o longínquo ano de 1941.
Era um mundo ainda mais estreito, para as mulheres, do que é hoje. Diana Prince, a princesa das amazonas que seria conhecida pelo nome de guerra de Mulher-Maravilha, emergiu em meio a uma dominação quase absoluta de homens não só nos quadrinhos, mas em todos os campos da sociedade. As conquistas femininas eram poucas e recentes. As mulheres haviam acabado de obter o direito de voto, em vigor nos Estados Unidos a partir de 1920 e no Brasil desde 1932, e lentamente começavam a ocupar o mercado de trabalho, mesmo que para suprir a falta de homens, enviados à Europa para lutar na Segunda Guerra Mundial.
“Finalmente, em um mundo dominado pelo ódio e pela guerra dos homens, surge uma mulher para quem os problemas e proezas masculinas são meras brincadeiras de criança – uma mulher cuja identidade é desconhecida de todos, mas cujos feitos sensacionais são excepcionais em um mundo em rápida transformação”, escreve William Moulton Marston nas primeiras linhas de Introducing Wonder Woman, história que apresentou a personagem ao mundo, no gibi All Star Comics, uma espécie de almanaque de heróis da DC Comics.
A comparação com os homens continua no mesmo quadrinho. “Com força e agilidade cem vezes maiores do que as dos nossos melhores atletas e mais fortes lutadores, ela vem do nada para vingar uma injustiça e consertar as coisas”, diz o criador da personagem, que assinava Charles Marston e também se valia de uma mistura de mitologia grega e romana para defini-la. “Tão amável quanto Afrodite, tão sábia quanto Atena – com a velocidade de Mercúrio e a força de Hércules –, ela é conhecida apenas como Mulher-Maravilha. Mas quem ela é de onde ela vem ninguém sabe.”
Não foi difícil para Marston erigir uma heroína tão poderosa – ou empoderada, para usar um termo caro aos dias de hoje – quando convidado pelo amigo Maxwell Gaines a criar um personagem de gibi, mídia que ele via como veículo pedagógico. Ex-aluno de Harvard que viu a luta das mulheres pelo voto e a maneira como o mundo masculino, incluindo a importante instituição onde estudava, as repelia, Marston era, ele próprio, um feminista. Precoce se comparado a muitos de seus contemporâneos, reconhecia o enorme potencial das mulheres. Mais que isso. O garoto que se matriculou em direito e acabou se tornando psicólogo e cineasta achava que as mulheres eram superiores, porque capazes de compaixão, uma das características que Diana carregaria com ela. E que os quadrinhos eram uma forma de preparar os adolescentes para a inevitável ascensão feminina.
“William Moulton Marston acreditava que as mulheres eram superiores aos homens e logo iriam dominar o mundo. Ele viu nas revistas em quadrinhos um veículo para levar suas teorias aos mais jovens. Diana foi criada para demonstrar a força, o poder e a compaixão das mulheres. A intenção era, primeiro, acostumar os meninos à ideia de que as mulheres eram mais fortes e poderosas, e assim facilitar a implantação do matriarcado; segundo, inspirar as meninas a se tornarem fortes e poderosas, para que pudessem dominar o mundo”, diz o americano Tim Hanley, pesquisador que assina o livro Wonder Woman Unbound: The Curious History of the World’s Most Famous Heroine (editora Paperback, Mulher-Maravilha Desvendada: A Curiosa História da Super-Heroína Mais Famosa do Mundo, em tradução livre), ainda sem tradução no Brasil.
“É claro que mulheres comuns não têm superpoderes, mas a personagem as encoraja”, diz Hanley, em entrevista a VEJA. “A personagem incentivou as mulheres a se envolver com os esforços de guerra. Regularmente, Diana aconselhava outas mulheres a ocupar cargos auxiliares oferecidos no serviço militar ou qualquer outro minimamente envolvido com a guerra. Moulton Marston também apreciava a ascensão da força de trabalho feminina. Ele acreditava que, quanto mais as mulheres experimentassem fazer parte de um local de trabalho, mais teriam autoestima e confiança, e mais próxima estaria a revolução do matriarcado.”
Fator que pode levar feministas a rejeitá-la, a Mulher-Maravilha é, como outras heroínas dos quadrinhos, bastante sensual: um corpo cheio de curvas, coberto por roupas que parecem ter um número a menos. Em seus 76 anos, ela teve apelo mais ou menos sexual de acordo com o desenhista que a assinava, mas nunca deixou de ser sexy, desde o traço de Harry G. Peter, parceiro de Marston na criação de Diana. Até isso era parte do plano do psicólogo, que era também cineasta, de difundir os seus ideais: a sensualidade era um recurso, na opinião dele, para fisgar leitores e submetê-los aos seus pensamentos.
A primeira aparição da Mulher-Maravilha aconteceu na revista em quadrinhos All Star Comics, da DC. Era o número 8 do título que reunia heróis como Batman e Super-Homem. Não demorou a se popularizar e mostrar que Marston tinha um bom faro para a cultura pop. Já no ano seguinte, a personagem debutava em um gibi próprio, Introducing the Wonder Woman, que depois seguiria sob o título de Wonder Woman apenas. Em 1944, suas histórias, distribuídas nessa revista e em outras – Sensation, Comic Cavalcade e de novo a All Star Comics – foram lidas por 10 milhões de pessoas.