Seu Jorge: ‘Há uma tentativa de extermínio do jovem negro brasileiro’
Em entrevista a VEJA, ator fala sobre a série da Netflix ‘Irmandade’ e da crise de segurança pública no país
De uma infância de privações em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, até engatar carreira em Hollywood, Seu Jorge trilhou um longo caminho. Morou na rua, tocou em bares em troca de pizza e viu sua família ser atingida pela perda de um de seus irmãos, morto em um tiroteio. A realidade vivida de perto se reflete no novo trabalho do ator – a série Irmandade, da Netflix.
Ambientado em 1994, o seriado do jovem diretor Pedro Morelli vai do gueto às celas de um presídio para examinar os mecanismos de nascimento e expansão de uma facção criminosa em São Paulo. Seu Jorge interpreta Edson, o líder da facção Irmandade, e conta com o reforço da atriz e diretora de teatro Naruna Costa, na pele de Cristina. Advogada e irmã de Edson, ela é obrigada a se infiltrar no grupo e conseguir informações para um delegado.
Apesar da distância geracional, Naruna tem 36 anos, e Seu Jorge, 49, e geográfica – ela é de Taboão da Serra, em São Paulo – ambos afirmam que logo perceberam conexões em suas histórias. Em entrevista a VEJA, os atores falam sobre a série, a busca por espaço para o negro na TV e os problemas da segurança pública brasileira.
Como foi o processo de criação de seus personagens?
Naruna: A Cristina é uma mulher enérgica, mas delicada. Procurei um equilíbrio, para que ela pudesse transitar nesse ambiente masculino que é o crime organizado. É uma personagem em desconstrução ao longo dos oito episódios.
Seu Jorge: A Naruna é uma mulher muito forte e que emprestou essa força para a personagem. Especialmente sobre o papel da mulher em uma comunidade. Quando rodamos no presídio (a série foi filmada numa ala desativada de um presídio em atividade próximo a Curitiba), vimos a fila de visitantes: só mulheres. Eram mães, irmãs, esposas, tias. São as mulheres que carregam os dramas dessa realidade. E sobre o Edson, ele é um cara duro, amargurado pelo abandono da família. Enquanto está preso, ele pensa ali, naquele mundo, no que tem de controlar, no que ele acha que é correto, no proceder, na conduta. Não tem relaxamento como líder de um ambiente que pode a qualquer momento explodir.
Buscaram inspiração em suas vidas pessoais?
Seu Jorge: Somos negros, conhecemos a realidade de uma comunidade. Trouxemos bastante da nossa experiência, da nossa bagagem de vida, de sofrimento, de luta e de batalha. Trabalhamos duro para não deixar sonhos pelo caminho. E é uma série com negros protagonistas e isso é importante.
Recentemente vimos a tragédia do caso Ágatha, no Rio de Janeiro, e existe uma ampla discussão sobre o pacote anticrime do ministro da Justiça Sergio Moro. Como analisa esse momento da segurança pública brasileira, especialmente no Rio de Janeiro?
Seu Jorge: Segurança pública é uma questão antiga e delicada. Localizar isso geograficamente na cidade do Rio de Janeiro é ainda mais complexo. A cidade atravessa uma transformação muito grande. Vimos seus líderes envolvidos em escândalos. O Estado acabou se diluindo e não demonstra estrutura de recuperação para políticas mais importantes. Que não é só segurança, é saúde também, por exemplo.
Tem sugestões?
Seu Jorge: Existem ONGs, por exemplo, que podem ajudar e que possuem uma participação efetiva dentro dessas áreas de conflito. Mas, hoje, elas correm o risco de serem tipificadas. Isso é um retrocesso. Essa população precisa de educação, saúde, oportunidades. É triste ver jovens, que podem e devem ser importantes para a próxima década, negligenciados. Pior, não é apenas a falta de uma política de inclusão, mas há uma certa perseguição de entendê-los como alvo. Apontar para essa juventude que está na comunidade, na favela, sem emprego, sem escola, e vê-los como violência em potencial é um erro. Há uma tentativa de extermínio do jovem negro brasileiro. É difícil dizer isso, mas parece faxina étnica o que acontece nas periferias brasileiras, especialmente no Rio de Janeiro. Sonhamos em ver o jovem negro livre de tudo isso. Com mais oportunidade de trabalho, de estudo e de realizar o que ele sonha. Que ele seja estimulado a procurar um caminho de mais oportunidade.
É difícil dizer isso, mas parece faxina étnica o que acontece nas periferias brasileiras, especialmente no Rio de Janeiro
Seu Jorge
A representatividade é um assunto em voga, especialmente no protagonismo negro na TV. Como analisam essa evolução?
Naruna: A representatividade negra é uma demanda antiga: de estar em todos os espaços. Ou se sentir representado em todos os espaços. Para nós, é uma responsabilidade, especialmente em um país em que a mídia tem um poder de alcance e de formação grande. O que muitos não enxergam é que quando o negro não é representado, se ele não chega a determinados lugares, isso resulta, sem exageros, em violência física, morte e genocídio de uma população: 54% da população brasileira é negra e essa proporção não é retratada na TV, por exemplo. Fato que deixa essas pessoas à margem da aceitação.
Seu Jorge: Fora do Brasil, já passei por situações de pessoas que nem imaginam que eu sou brasileiro, pois não sabem que o Brasil tem negros: a imagem que passamos até fora do país é do branco. Naruna e eu atravessamos o que digo ser uma cota. Conseguimos estruturar uma vida adulta, continuamos batalhando por nossos sonhos. O que acontece hoje é que existe uma juventude negra sendo dizimada aos montes, pelo fato de ser negro, sim. Por ser humilde, por não ter tido oportunidade de frequentar rodas acadêmicas, por viver em zona periférica. Jovens são tratados como periculosos por estarem em áreas identificadas pelo Estado como periculosas. Por isso, temos um quadro onde se faz necessário a representatividade. E temos orgulho de fazer parte dele.