‘Casamento às Cegas’: as razões do sucesso do reality novelão da Netflix
Chamado de ‘experimento’, programa leva participantes ao altar no intuito de descobrir se as emoções estão à frente da atração física
Quero um homem que vai me amar por quem eu sou, não por minha aparência”, diz uma esperançosa e emotiva mulher de 32 anos para a câmera. Em seguida, um estiloso rapaz de 34 anos, barba farta e blazer azul-celeste, entoa discurso parecido: “Chega um momento em que o homem precisa se acalmar. Estou pronto para achar uma esposa”. As falas piegas, apropriadas para uma mesa de bar após alguns drinques, são ditas entre outras de mesmo tom na abertura de Casamento às Cegas, o novo reality show-sensação da Netflix. Ops, reality show, não. Os apresentadores do programa, Nick e Vanessa Lachey, se recusam a dar o vil rótulo à atração, que é tratada como um “experimento”. A hipótese a ser provada é: a conexão emocional estaria acima da atração física num relacionamento feliz? Resumindo: o amor é cego?
As cobaias são quinze homens e quinze mulheres solteiros, atraentes, entre 24 e 35 anos, apressados em dar início a uma família. Dois ambientes separam os participantes por gênero. A casa-cenário dá acesso a confortáveis cabines individuais, com um sofá e até mantinha, onde rapazes e moçoilas vão conversar com o sexo oposto, sem ver uns aos outros, separados por uma parede azul translúcida. O confinamento dura dez dias. Quem se apaixona já pede o alvo de seu desejo em casamento. O encontro físico só acontece quando os pombinhos estão noivos — com direito a homens de joelhos, flores e um rio de lágrimas.
Até chegar ao altar junto com os casais, o espectador observa as mais variadas reviravoltas e emoções. Um cativante casal inter-racial, Lauren e Cameron, encara a opinião de familiares e amigos: a moça, ativista negra, nunca havia namorado um homem branco. Um triângulo amoroso entre o galanteador Barnett e duas moças, Amber e Jessica, faz a última ganhar fama de vilã: rejeitada, Jessica aceita o pedido de casamento de outro, Mark, como segunda opção — e, do início ao fim, o trata com doloroso desdém. Giannina, uma loira venezuelana, protagoniza brigas acaloradas com o noivo, Damian, que sempre terminam em sexo de reconciliação.
Qualquer similaridade com o horário nobre da Globo não é coincidência. Realities de namoro são farinha do mesmo saco de onde saem comédias românticas, livros açucarados — e, sobretudo, novelas. Em comum, são produtos da idealização do casamento e do amor romântico como fontes da felicidade. “Nossa cultura hipervaloriza a família e os rituais que ela envolve”, diz a antropóloga Mirian Goldenberg. “Vemos jovens casando-se com festa e pompa: um novo reconhecimento da velha cerimônia que confere o selo de ‘essa pessoa é aceita e amada’. Nem por isso, porém, ele ou ela serão, de fato, felizes.”
O mundano dilema da busca pelo amor chegou à TV em 1965, quando a rede americana ABC lançou The Dating Game, atração em que uma pessoa fazia perguntas a três candidatos, os quais só poderia ver após eleger um favorito. O gênero evoluiu desde então, dando origem a programas que são exemplos primorosos do guilty pleasure, o vício prazeroso em produções de gosto duvidoso, da resiliente The Bachelor à caliente De Férias com o Ex, hit da MTV. Não se pode esquecer, é claro, de Silvio Santos e seu memorável Em Nome do Amor, exibido entre 1994 e 2000. Na atração, rapazes observavam mulheres por binóculos antes de tirá-las para dançar — e azarar.
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A popularidade do pioneiro The Dating Game fez dele vitrine para quem estava mais a fim de projeção que de romance — caso dos então anônimos Arnold Schwarzenegger e Farrah Fawcett, que se projetaram ali nos anos 60 e 70. O padrão se repete agora: o reality da Netflix transformou seus participantes em celebridades nas redes sociais — o número de seguidores no Instagram de Giannina subiu de 150 000 para 500 000 na semana de exibição do último episódio, em 27 de fevereiro. Engrossa-se, assim, uma nova tendência: a exploração da fama de influencers novatos e estabelecidos pelos reality shows (veja o quadro na pág. ao lado).
O sucesso de Casamento às Cegas tem gostinho especial para a Netflix: a plataforma fez apostas bem-sucedidas em variados fronts, mas ainda não tinha um hit nos reality shows. Nos Estados Unidos e no Brasil, o programa ficou entre os dez mais vistos no recém-lançado ranking de popularidade do canal. Não à toa: com seu jeitão de folhetim, ele é perfeito para a era das famigeradas maratonas.
Já no segundo dos dez episódios, o melodramático “experimento” forma seus seis casais. A lua de mel em um hotel de luxo em Cancún, no México, é a etapa da pegação. Câmeras voyeurísticas exploram ao máximo o início do contato físico entre os noivos. Ali, uma dupla desanda: a noiva faz as malas ao descobrir que seu quase futuro marido é bissexual. Os cinco casais restantes se mudam para apartamentos em Atlanta, onde devem morar com seus pares enquanto se preparam para as bodas, dali a trinta dias. A decisão final acontece no altar, diante de amigos, familiares e mestres de cerimônias. A marcha nupcial é substituída por composições dramáticas, de um suspense quase hitchcockiano, à espera da resposta: sim ou não? Fazia tempo que ouvir o indefectível “felizes para sempre” não causava tantos suspiros.
Publicado em VEJA de 11 de março de 2020, edição nº 2677
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