Nas últimas décadas, o racismo vem saindo das sombras sob o embalo de uma ala da sociedade que se empenha em trazê-lo aos holofotes — um primeiro e decisivo passo para combater essa chaga ainda tão entranhada no tecido social. Avanços foram registrados, mas o preconceito segue, ora de forma velada, ora escancarada, presente no cotidiano brasileiro. Para averiguar onde a intolerância calcada na cor da pele se faz mais aguda, o Ipec produziu um recente levantamento, a pedido dos institutos Seta e Peregum, que resultou em um mapa no qual um dado salta aos olhos: é na sala de aula que ela mais se pronuncia, das carteiras escolares à universidade. Entre os entrevistados, 38% afirmam ter sido alvo de tal brutalidade justamente quando estavam às voltas com a lição ou no recreio, seguidos de 29% discriminados no ambiente de trabalho (veja o quadro). “O colégio é um microcosmo do que acontece fora dele e, como vemos, o preconceito se reproduz com toda força ali”, avalia a historiadora Ana Paula Brandão, do Instituto Seta.
A violência contida no racismo sabidamente causa danos a quem se encontra na mira — e em nenhuma fase da vida eles são mais deletérios do que na infância e na adolescência. Em plena etapa de formação e desenvolvimento, os efeitos dos olhares atravessados e da exclusão podem se desdobrar por anos. “Para uma criança, o racismo, não raro, desemboca em transtornos como depressão e ansiedade”, afirma a psicóloga Jeane Tavares, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), especializada no tema. Entre os vários casos ouvidos por VEJA, o do pequeno Pedro, de 7 anos, continua a doer fundo, uma ferida que sua mãe, Aline Gabriel, 37, tenta fazer cicatrizar. Aluno da Fundação Instituto Tecnológico, escola particular na Grande São Paulo, ele começou a queixar-se de rejeição por parte dos colegas. “Pedro dizia que era excluído, que não deixavam ele brincar e sempre ficava em último na fila. Um dia, chegou em casa falando que o chamaram de ladrão”, relata a mãe, que levou o garoto à psicóloga. “Os brancos não gostam de mim”, queixava-se ele, que continuou a sofrer, até que a terapeuta recomendou a troca de colégio. “Depois que saiu de lá, meu filho avançou muito no aprendizado”, conta Aline, aliviada. Procurada por VEJA, a escola, processada pela mãe, não se pronunciou.
A maioria dos colégios admite se tratar de assunto espinhoso, difícil de lidar, e age mais por reação, quando o caldo do racismo entorna, do que mantendo o debate aceso. Mas já há bons exemplos de instituições para as quais a ficha caiu, experiências que devem ser observadas por ajudar a dissolver o muro do preconceito. No Colégio São Vicente de Paulo, no Rio, foi inaugurada uma biblioteca dedicada à memória de importantes figuras negras, a Afroteca, que impulsiona uma constante conversa sobre a exclusão. “É um lugar de reflexão sobre a luta antirracista”, explica o coordenador acadêmico André Chaves. Em São Paulo, o Colégio Equipe criou um programa que, além de conceder bolsas a estudantes negros, formou comissões para discutir os gargalos raciais no país. Quanto mais se cutuca o vespeiro, mais histórias de preconceito vêm à tona. “Como todos estão mais atentos, conseguimos hoje reconhecer atitudes racistas que antes passavam despercebidas”, admite a educadora Luciana Fevorini, diretora da unidade.
Num sinal de que os ventos vão mudando gradativamente de direção, casos de racismo têm conquistado espaço nas redes, que tratam de escancarar os absurdos e são vastamente repudiados. Recentemente, a atriz Samara Felippo, 45 anos, ampliou o alcance do debate ao vir a público contar que Alicia, de 14 anos, sua filha com o ex-jogador de basquete Leandrinho, tivera o caderno rabiscado com ofensas de cunho racial por colegas de turma no Colégio Vera Cruz, em São Paulo. “A situação começa com pequenas violências que ninguém enxerga como um problema. Aí surgem as piadinhas e a exclusão, até chegar a xingamentos, como aconteceu com Alicia”, falou Samara a VEJA. As duas envolvidas foram suspensas pela instituição, uma delas retirada da escola pelos próprios pais. Em comunicado, o Vera Cruz informa que “reconheceu desde o primeiro momento a gravidade deste ato violento de racismo, nomeando-o como tal, e imediatamente foram realizadas ações de acolhimento à aluna agredida e sua família”.
O tópico está tão na ordem do dia que recentemente acendeu um sinal amarelo no Ministério da Educação (MEC). A pasta acaba de reservar uma bolada de 1,5 bilhão de reais até 2027 para um pacote de medidas que têm por objetivo duelar contra o preconceito, o que abrange treinamento de professores e a implantação de uma cartilha de prevenção em resposta a essa praga. Há a percepção de que o racismo se encontra enfronhado nos vários escaninhos do ambiente escolar, incluindo o currículo. “Geralmente, só se estuda a história afro-brasileira associada ao processo de escravização, sem abrir o leque para um mergulho mais denso”, pontua a pedagoga Elvira Pimentel, da Universidade Estadual de Feira de Santana, especialista em relações raciais nos colégios. É verdade que iniciativas para reverter tal lacuna têm sido tomadas — duas décadas atrás, uma lei tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileiras, por exemplo. A matéria, porém, não entrou para valer no radar da criançada.
Pois é bom que ingresse na cartilha o quanto antes. A intolerância, como se sabe, não provoca feridas apenas no campo das emoções — ela também pode afetar em elevado grau o desempenho cognitivo. Um estudo da Unicef, que investigou 22 países, traz um número a atentar: a turma dos 7 aos 14 anos que relata ter sido alvo de preconceito apresenta 50% menos chances de desenvolver habilidades básicas de leitura na comparação com colegas que respiram um ambiente saudável.
Quem sente na pele sabe quão sofridos são a rejeição e o isolamento que decorre dela. Aconteceu com os filhos adolescentes da administradora Renata Motta, 41 anos, vítimas de racismo no intervalo de poucas semanas em diferentes colégios de Niterói, na região metropolitana do Rio. Em um grupo no WhatsApp, colegas de turma chamaram o primogênito, Gabriel, de 15 anos, de “macaco”. A direção do Colégio Pluz suspendeu os envolvidos, dizendo ser contra a expulsão, mas a favor da conversa para evitar novos episódios. No caso de sua irmã, Gabriela, de 13, o jovem que deu voz ao racismo acabou expulso. “Não há um debate mais profundo nos colégios”, avalia a mãe, fazendo eco com estudiosos da área. “A sociedade e as escolas ainda não sabem identificar nem lidar com a discriminação”, observa Jackson Almeida, da ONG Todos Pela Educação. É recomendável que se apressem e comecem a tirar nota azul na matéria.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2024, edição nº 2895