Bruno Rodrigues Lima teve contato com a história de Luiz Gama pela primeira vez há mais de 20 anos, quando, ainda pré-adolescente, ouviu sobre ele no sítio da tia Lula no interior de São Paulo. Quando concedeu entrevista a VEJA, ela estava, mais uma vez, indo em direção a esse local, conhecido agora como Quilombo de Brotas. Dessa vez, no entanto, o motivo da visita era diferente. Ele iria apresentar aos moradores seu recém-lançado livro sobre o famoso e inspirador abolicionista.
Advogado pela Universidade Federal da Bahia, Lima acaba de lançar a obra Luiz Gama contra o Império, pela editora Contracorrente. Fruto da sua celebrada tese de doutorado, defendida e premiada na Faculdade de Direito da Johann Wolfgang Goethe, na Universidade de Frankfurt, na Alemanha, essa é a mais completa obra sobre a atuação jurídica de Gama.
O livro, no entanto, não se restringe a apresentá-lo como um célebre advogado. Era poeta, jornalista, jurista, mas, antes de tudo, se destaca como pensador de um Brasil justo. Na abertura, uma frase se propõe a resumir sua história. “Em uma sociedade sob o império da escravidão, e quiçá até para as liberalíssimas do século XXI, a luta pela liberdade e por justiça se faz mesmo a valer pelos escravizados, despossuídos, humilhados e ofendidos que ousam levantar e enunciar o que é e o que não é o Direito.”
A VEJA, Lima, que levantou mais de 1 mil documentos inéditos e lançou, em 2021, as obras completas do advogado, apresenta um Gama revolucionário, justiceiro e sonhador de uma república verdadeiramente livre.
Qual a sua relação com a história do Luiz Gama? Eu tinha de 13 para 14 anos quando ouvi a história do Luiz Gama pela primeira vez. Foi no mês do meu aniversário, no ano de 2002, quando fui pela primeira vez ao Quilombo Brotas, que era antigamente conhecido como sítio da tia Lula. E foi um contexto muito intenso, porque, apesar de terem a posse legal da Terra, as 33 famílias que moravam naquele sítio estavam sob ameaça iminente de despejo. Enfim… A história do Luiz Gama sobrevive na tradição oral ininterruptamente há gerações e gerações. Foram os anciões desse quilombo que me ensinaram sobre ele. Ele sobrevive na tradição oral negra de São Paulo e de Salvador.
Depois, ainda na adolescência, o senhor continuou essa pesquisa, correto? Sim, até os 16 anos eu já tinha lido tudo o que tinha disponível sobre ele, mas o principal conhecimento sobre ele veio da tradição oral, não dos livros. Depois, é claro, a escolha por estudar direito veio dessa inspiração – Luiz Gama é o maior advogado do Brasil.
Mas historicamente, o ambiente acadêmico não é muito adepto à tradição oral, certo? Para mim foi um custo, foi difícil constatar isso. O direito tem muita sustentação na palavra escrita e eu vi que teria pouquíssimo espaço para essa história. Quero dizer, a história valia muito pouco nesse ambiente. Mas isso até que foi bom, porque eu vi que o registro escrito era fundamental para que essa história não se tornasse uma mera fantasia.
E como foi encontrar documentos que registravam essa história? Desde os 14 anos eu já frequentava arquivos em busca dessa história, mas vi que que teria que ir buscar documentos em muitos outros. Foi aí que eu vi que a história do Luiz Gama estava muito bem documentada. A escravidão no Brasil produziu muito papel e ele foi alguém que dedicou uma vida a combater a escravidão. Gama libertou mais de 500 pessoas dos cativeiros e isso foi registrado em alguns documentos. Conforme eu fui encontrando, senti ainda mais a força dessa história. O objetivo final não era o projeto de doutorado, mas me dediquei ao Projeto Luiz Gama, através do qual publiquei as obras completas dele, em 2021.
E como foi levar essa história que é tão brasileira para uma universidade europeia? Foi fácil convencer seus orientadores de lá a se debruçar sobre essa história? Quando eu cheguei na Europa, eu imaginava que eu ia até ter uma certa dificuldade em explicar, mas não. A história do Luiz Gama é muito didática, qualquer pessoa que ouve entende que ela é importante. Quando cheguei à Alemanha logo a apresentei em público e tive um retorno fantástico. E tive a sorte de ser orientado por um dos maiores historiadores do direito do mundo, chamado Thomas Duve. Assim que eu apresentei a história do Luiz Gama, ele não teve a menor dúvida da importância, não só para o Brasil, mas para o mundo. É a história da diáspora africana na América. E eu fiquei muito grato, porque vinha há algum tempo pedindo uma oportunidade para estudar o Luiz Gama nas universidades brasileiras
E houve resistência? O Luiz Gama tem uma palavra muito criativa, original, forte e corajosa em denunciar a escravidão e os escravizadores, principalmente aqueles do mundo do direito. Ele denunciou os professores, juízes, desembargadores e ministros. Eu encontrei muita ajuda, mas em espaços de poder houve mais resistência do que apoio.
No livro, o senhor trata o Luiz Gama como uma referência jurídica, mas também como um intelectual. O Brasil seria beneficiado ao passar a vê-lo como um pensador? Ele enfrentou problemas complexos e inéditos e deu respostas originais a esses problemas. Ao fazer isso, ele se torna, mais do que um advogado, um jurista; mais do que um jurista, um intelectual; mais do que um intelectual, um pensador e um filósofo. Não existe no mundo obra mais radical do que a de Luiz Gama. Ele vai dizer, por exemplo, que o escravo que mata o senhor cumpre uma prescrição inevitável de direito natural. Se todos levassem esta resposta ao pé da letra, coisa que ele queria, haveria uma revolução no Brasil. Então, o Luiz Gama tem ideias revolucionárias, ideias de democracia, ideias de república, de igualdade de direitos, que são profundamente atuais. Essa dimensão do pensador, do intelectual, do teórico da sociedade, é uma que eu procurei enfatizar no trabalho.
Vivemos hoje essa república que o Luiz Gama teria sonhado? Esse trabalho não só está incompleto, como está muito longe de ser completo. A república tem uma dívida histórica com quem a sonhou e com quem fez a abolição de fato. A república do Luiz Gama é uma república de igualdade e hoje vemos um sistema que hierarquiza pessoas a partir da cor da pele, do gênero e da classe social. Precisamos cumprir o sonho de Luiz Gama, que foi quem melhor sonhou a república.
Gama já ganhou, no Brasil, a notoriedade que merecia? No prefácio do livro, o ministro Silvio Almeida diz que a obra marca um novo estágio nos estudos e na recepção da obra de Gama. Esse livro examina em detalhes o jurista e as novas gerações têm um novo lugar onde aprender sobre ele. Agora, com mais de mil documentos inéditos, com um argumento forte, não vai ter como falar em direito no Brasil sem falar em Luiz Gama. Não vai ter como falar em democracia no Brasil sem falar em Luiz Gama. E muito menos em república. Acredito, torço, escrevi com o objetivo de que ele ganhe ainda mais popularidade.