O resgate da obra de Luiz Gama, de ex-escravo a advogado abolicionista
Uma sequência de lançamentos e homenagens traz à tona um personagem fascinante, vítima de apagamento histórico por mais de um século
Entre 1870 e 1872, uma ação iniciada no Fórum de Santos, em São Paulo, chegou ao Supremo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, última instância do Poder Judiciário no Brasil do tempo do império. No fim do processo, os 217 escravos de Manoel Joaquim Ferreira Netto receberam sua liberdade de volta, como o nobre português havia determinado em testamento. Os herdeiros e sócios do fidalgo, que se recusavam a cumprir sua última vontade, foram representados por José Bonifácio de Andrada e Silva, neto do Patrono da Independência. Na defesa dos negros escravizados estava Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882), um rábula, como eram chamados na época os advogados sem título acadêmico que exerciam a profissão por meio de uma licença especial, o provisionamento. Descoberto recentemente, o calhamaço de mais de 1 000 páginas comprova a força de um personagem fascinante, um ex-escravo que se tornou advogado abolicionista, jornalista e poeta, vítima de apagamento histórico por mais de um século. Neste ano, no entanto, ele retorna em grande estilo, com direito a mais um título honorífico, ao lançamento das obras completas e até à estreia de um filme sobre sua vida.
O resgate de Luiz Gama vem acontecendo ao longo da última década. É impulsionado pela professora Ligia Fonseca Ferreira, do departamento de letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que em 2011 reuniu no volume Com a Palavra, Luiz Gama (Imprensa Oficial) cerca de quarenta textos dele, entre poemas, artigos, cartas e máximas. No ano passado, Ligia voltou ao personagem com outro compêndio, Lições de Resistência (Edições Sesc), antologia de artigos na imprensa paulista e carioca. Os dois livros reforçam a tese, sustentada pela acadêmica, de que o advogado utilizava os meios de comunicação nos quais trabalhou, como O Ipiranga, Radical Paulistano, A República, Gazeta da Tarde, entre outros, para difundir ideias abolicionistas e republicanas.
Em 2015, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) o reconheceu como advogado. Corrigiu uma injustiça cometida pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, epicentro da elite escravocrata da época, que em 1850 recusou sua inscrição apenas porque era negro, ex-escravo e pobre. Na época, o rapaz de apenas 20 anos continuou frequentando as Arcadas, visitou a biblioteca e assistiu às aulas como ouvinte, adquirindo conhecimento para interpretar as leis e fazer petições. Só em 2017 ele foi homenageado pela alma mater que o renegou, batizando com seu nome uma das salas de aula da instituição — privilégio reservado aos antigos professores. “O Brasil padece de um cancelamento contínuo de figuras históricas negras”, diz Wallace Corbo, professor de direito da Fundação Getulio Vargas do Rio. “Não trabalhamos com rigor e com apreço a memória brasileira a partir desses personagens.”
Há, agora, felizmente, bons ventos. Só este ano, Gama já recebeu o título de doutor honoris causa concedido pela Universidade de São Paulo (USP). Até o fim do mês, a editora Hedra lançará a coleção Obras Completas de Luiz Gama, com dez volumes e cerca de 5 000 páginas, abrangendo desde a produção literária poética até artigos teóricos, passando pelo trabalho jornalístico. São mais de 750 textos do abolicionista, dos quais 600 inéditos, pesquisados ao longo de nove anos em arquivos judiciários e de jornais da época pelo historiador Bruno Rodrigues de Lima, pesquisador do Instituto Max Planck, na Alemanha. “O Gama é um patrimônio do povo brasileiro, principalmente do povo negro que o bancou nos momentos mais difíceis”, decreta Lima.
O coroamento dessa recuperação acontece no mês que vem, com o lançamento do filme Doutor Gama, de Jeferson De, que conta a história do personagem desde a infância, em Salvador, na Bahia, até sua consagração como advogado abolicionista que tirou dos grilhões mais de 700 escravos, segundo estimativas mais recentes. Nascido livre de uma liberta, Luiza Mahin, ele foi vendido aos 10 anos pelo pai, um fidalgo português, permaneceu analfabeto até os 17 anos e conquistou sua liberdade apenas um ano depois de aprender a ler. Em São Paulo, tornou-se referência intelectual tanto para os negros quanto para uma elite que se recusava a enxergar a tragédia da escravidão. “O filme tem essa função de levar a um público mais amplo a contribuição intelectual de um negro que teve a ousadia de defender naquela época um país republicano e igualitário”, diz o cineasta. O ideal ainda está longe de ser alcançado, mas trazer de volta personagens como Gama é um grande passo de respeito com a história do país e aceno para o fim das terríveis desigualdades.
Publicado em VEJA de 14 de julho de 2021, edição nº 2746