Conheça a mulher que enganou os franceses e salvou o Rio de Janeiro
Com a cidade desguarnecida, Inês de Sousa vestiu mulheres com armaduras e criou um breve exército feminino, mas hoje é quase esquecida
Existem determinados espaços que, por muito tempo, foram vedados às mulheres, sendo rotulados como “território masculino”. A política, o esporte e, evidentemente, a guerra, figuram entre os mais proeminentes, embora não sejam os únicos. No entanto, a perspicácia feminina tornou-se especialista em contornar tais proibições. Um exemplo notório é a história de Joana d’Arc, a camponesa francesa que liderou as tropas de Carlos VII durante a Guerra dos Cem Anos. Seu papel determinante não lhe valeu glórias e honrarias, mas sim uma morte prematura na fogueira, sob a acusação de bruxaria. Já no Brasil, a audácia de Maria Quitéria de Jesus teve um desfecho mais auspicioso. Diante da impossibilidade de ingressar nas tropas baianas devido ao seu gênero, Quitéria não se deixou abater. A solução? Vestir-se de homem. Cortou os cabelos, ocultou os seios e assumiu a identidade de “soldado Medeiros”. Como a audácia muitas vezes precede o pioneirismo, “soldado Medeiros”, ou melhor, Maria Quitéria, entrou para a história como a primeira mulher a integrar as Forças Armadas. Escapando da fogueira, a combatente foi condecorada como heroína por D. Pedro I, exaltada pelo exército no século XX e símbolo para coletivos feministas que lutaram contra a Ditadura Militar brasileira.
Embora oficialmente reconhecida como combatente, Quitéria estava longe de ser a primeira guerreira da nossa história. Em um país marcado por invasões, as fileiras de mulheres testemunharam muitas vitórias e derrotas. No entanto, ao contrário de nossa primeira soldado, nem todas foram reconhecidas. Não muito longe de “soldado Medeiros”, na mesma Bahia e no mesmo contexto de luta pela emancipação, estava Maria Felipa de Oliveira. Maria não tentou disfarçar sua feminilidade, nem adotou vestimentas masculinas. Como ex-escravizada, ela usava saias rodadas, bata e chinelos. Mesmo assim, liderou um grupo de mais de 40 homens e mulheres de diversas classes e etnias. Ela defendia parte do litoral de Itaparica contra os soldados contrários à independência do Brasil. Além de vigiar as praias, ela fortificou trincheiras e organizou o envio de alimentos para as tropas situadas no recôncavo baiano. Embora os registros da trajetória de Felipa sejam escassos, seus feitos resistiram na história oral da pequena ilha baiana.
Em Brasília, foi erguido em 1986 o Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, um memorial destinado a homenagear os brasileiros e brasileiras que serviram à nação. No coração deste panteão está o Salão Principal, onde repousa o imponente Livro de Aço, também conhecido como o Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. O documento é destinado ao “registro perpétuo do nome dos brasileiros ou grupos de brasileiros que tenham oferecido suas vidas à Pátria, defendendo-a e construindo-a com dedicação e heroísmo excepcionais”. Os nomes inscritos são aprovados pela Câmara e pelo Senado e sancionados pela Presidência da República. Atualmente, o livro conta com 84 nomes, dos quais apenas 17 são de mulheres. A ausência não causa surpresa quando nos lembramos que o primeiro banheiro feminino no plenário do Senado foi construído apenas em 2016.
O nome de Inês de Sousa não foi incluído entre as 17 homenageadas. No entanto, devemos a ela a existência do Rio de Janeiro. Inês era esposa de Salvador Correia de Sá, um dos primeiros governadores da então capitania do Rio de Janeiro. Em 1581, enquanto Correia de Sá se encontrava no interior, em uma missão em busca de indígenas, três navios franceses carregados de corsários aproximaram-se da Baía de Guanabara. Na cidade, ficaram apenas as crianças, os idosos e as mulheres, presas fáceis para um ataque, não fosse pela sagacidade de Inês.
Diante da ausência de soldados, ela ordenou que todos os que restavam na vila vestissem armaduras e capacetes masculinos e fossem para a praia. Lá, simularam manobras de defesa. Diz a lenda que foi esse simulacro de reação, com um número de pessoas superior ao efetivo português, que afastou os franceses. Eles não invadiram a cidade, como provavelmente pretendiam, e se limitaram a negociar madeira com os indígenas em outros pontos do litoral. Este feito engenhoso, no entanto, tornou-se apenas um apêndice histórico, algo que não mereceu grandes registros. Enquanto os descendentes de Correia de Sá governaram o Rio de Janeiro por mais de três gerações, fundindo suas biografias à história da cidade, Inês caiu no esquecimento.
A experiência “militar” de Inês foi curta. Sua fileira de soldados mulheres não sobreviveu mais que algumas horas. Assim como a carreira militar de Quitéria, meramente simbólica. Durante os séculos posteriores não houve espaço para as mulheres nas Forças Armadas Brasileiras, fazendo com que sua presença não passasse de uma rara exceção. O Exército, por exemplo, permite a entrada de mulheres em seus quadros desde 1992. A participação feminina, porém, representa hoje somente 6% do efetivo da Força Terrestre —13.017 num universo de mais de 212 mil militares ativos. Na Aeronáutica a situação é melhor, e as mulheres representam pouco mais de 20% da força (14.118 mulheres num total de 67.605 militares), mas são impedidas de entrar na infantaria —arma responsável pelo combate a pé. Na Marinha, as mulheres ocupam 8.420 dos cerca de 75 mil cargos ativos —total de 11%. A Força não proíbe a participação feminina em nenhuma arma, mas o acesso às altas patentes ainda é pouco comum.
Em 4 de abril de 2023, Maria Cecília Barbosa conseguiu o improvável. Ascendeu ao posto de Almirante, patente mais alta da Marinha do Brasil. Demorou mais de 200 anos para que uma mulher negra como Cecília atingisse esse patamar. Antes dela, apenas duas outras mulheres chegaram ao posto: Dalva Mendes, em 2012, e Luciana Mascarenhas, em 2018. “Eu não planejava ser Almirante”, diz Maria Cecília. Humilde, a médica diz que seu objetivo era apenas fazer um bom trabalho. “A gente trabalha e às vezes se pergunta se vai ser reconhecida. Eu, felizmente, fui e chegar até aqui é uma honra e uma responsabilidade”. Atualmente, Cecília é a única mulher almirante na ativa. A solidão do cargo não a abala, embora torça por companhia. “O fato de eu estar aqui mostra para as mulheres que sonham com a carreira militar que é possível”, sintetiza. Agora, porém, não é preciso vestir-se de homem.
*Este texto é o segundo de uma série especial de quatro reportagens que busca resgatar biografias de mulheres pouco conhecidas da história brasileira, relacionando-as a trajetória de mulheres contemporâneas. As histórias foram publicadas ao longo de todo o mês de março.