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Como nasce uma língua: exposição e livro questionam origens do português

As duas iniciativas abordam as misturas e confluências que resultaram nas línguas portuguesas faladas dos dois lados do Atlântico

Por Marília Monitchele Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 Maio 2024, 14h16 - Publicado em 24 Maio 2024, 14h03
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  • Os nascimentos das línguas são misteriosos. É difícil precisar em que momento um grupo de pessoas deixa de se comunicar de uma forma para se comunicar de outra. Isso porque a transição de um sistema linguístico para outro raramente é abrupta, já que as línguas nascem da interação, da fusão e da troca. Frequentemente, várias línguas coexistem por longos períodos antes de emergirem como dominantes, embora esse domínio nunca seja permanente. A boa notícia é que os falantes de português terão uma visão privilegiada deste fantástico mundo de nascimentos, mortes e renascimentos. Em movimento sincrônico, quase astral, duas iniciativas abordam as misturas e confluências que resultaram na língua de Camões, mas também de Machado de Assis.

    Vindo do lado de lá do Atlântico, acaba de aportar no Brasil o livro do filólogo português Fernando Venâncio. Assim nasce uma língua (99,90 – Tinta-da-China Brasil) tem o mérito de refutar as visões puristas que defendem que o português nasceu no século 12, com a formação do reino de Portugal, descendendo diretamente da língua romana. Para o autor, a língua portuguesa teve uma origem muito mais prosaica, cerca de seis séculos antes, derivando do galego, língua falada por camponeses no noroeste da Península Ibérica. A conclusão, aparentemente simples, joga por terra o argumento xenófobo que por séculos inferiorizaram as variações faladas fora do território europeu: a ideia de que nossa língua nasceu com os portugueses. “O português considera a si mesmo como um ser único. Nas suas formas mais extremas, esta convicção chega a supor uma intervenção providencial. Portugal teria, e isso desde sempre, um povo, uma cultura, uma religião e, claro, uma língua própria”, disse o autor a VEJA. 

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    Livro do filólogo português Fernando Venâncio derruba mitos sobre origens da língua – (Ed: Tinta da China Brasil/Divulgação)

    Como conceber, então, que um idioma igual ao português existisse antes mesmo de Portugal? “Nesse caso, os sentimentos se misturam”, pondera Venâncio. “Nós, portugueses, concebemos mal que o nosso idioma tenha sido engendrado fora do nosso território. E, efetivamente, toda a história do português acaba por ser a de um gradual distanciamento do galego”. Distância esta que o autor tenta, agora, encurtar trazendo esse passado que por muito tempo foi jogado para baixo do tapete e evidenciando as misturas incômodas e diversas que sempre constituíram a língua. 

    Ao analisar certas proximidades, porém, Venâncio não deixa de notar evidentes afastamentos. O livro conclui que esta língua está fadada a dividir-se em outros idiomas, como outrora aconteceu com os romanos. “A história do Português mostra que ele sabe se adaptar com facilidade. Ele superou as dores do crescimento e se apresenta, de rosto renovado. Isto permite prever que brasileiros, africanos e portugueses continuarão a dispor de um idioma rico e dúctil, sem receio das variedades e mesmo das diferenças”, sintetiza o autor que lembra que a pouca consideração dada por Portugal a língua que vinha se constituindo no Brasil resultou em uma invejável liberdade criativa para os brasileiros que, enquanto povo, tiraram o máximo proveito disso.

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    Do lado de cá do Atlântico, as línguas se encontram. Se o português de Portugal se formou a partir do galego, foi no Brasil que ele encontrou seu âmago, misturando-se a outras formas de falar e constituir o mundo. Essas intersecções são abordadas na nova mostra temporária aberta hoje (24) no Museu da Língua Portuguesa, seguindo até janeiro de 2025. Chamada de Línguas Africanas que Fazem o Brasil, com curadoria do músico e filósofo baiano Tiganá Santana, a exposição se debruça menos sobre a língua de Camões e mais sobre o tempero de Machado de Assis. As sincronias entre Venâncio e Santana, porém, se evidenciam nos detalhes. Ambos repensam o apagamento das influências linguísticas que por muito tempo foram consideradas inferiores na formação do nosso vocabulário e mostram que todas as línguas só são possíveis a partir das misturas que as constituem. “É preciso lembrar sempre que Portugal não foi exclusivo por aqui. Se hoje temos uma língua brasileira é porque o Brasil constituiu sua própria dinâmica e, nessa dinâmica, os corpos pretos foram grandes difusores de um novo modo de fala”, sintetiza Santana.

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    Com curadoria do músico e filósofo Tiganá Santana, mostra segue até janeiro de 2025 – (Guilherme Sai/Reprodução)

    Esse modo de falar, “onde as palavras recuperam sua substância total”, como resumiu a poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, foi constituído de palavras como bunda, marimbondo, fofoca, moleque, canjica e samba que, incorporadas ao idioma falado e escrito no Brasil, muitas vezes esquecem suas origens africanas. Nas escolhas feitas por Santana, o visitante encontrará não apenas experiências verbais, mas também linguagens não verbais, apresentadas por meio de vídeos, sons e instalações imersivas.

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    O objetivo é que o público não apenas aprenda mais sobre as línguas africanas, mas também as sinta, observando as sonoridades e movimentos que cada palavra exige para vir ao mundo e mostrando que o português brasileiro é, sobretudo, uma língua gostosa de se falar e de se ouvir. “O português africanizado do Brasil se inundou de signos e símbolos marcados por fricções e ressignificações que mostram que a nossa língua é repleta de violências, mas também de sobrevivências”, argumenta o músico, que foi o primeiro artista brasileiro a apresentar ao público um álbum inteiramente gravado em línguas africanas.

    “O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?”, questionava José de Alencar no fim do século XIX. Dois séculos depois, Tiganá Santana e Fernando Venâncio parecem finalmente concluir que há beleza, mistura e riqueza em cada uma, à sua própria maneira e com seu próprio tempero.

     

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