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A origem medieval do trote universitário

Por Da Redação
9 fev 2009, 20h38

Por Marina Dias

Encerrada a temporada de vestibulares, as universidades brasileiras recebem nesta semana milhares de novos alunos. É a abertura da temporada de matrículas, aulas e trotes – uma das mais controversas tradições do ensino superior brasileiro. Nos últimos anos, os trotes a alunos novatos têm chamado mais a atenção devido aos excessos: o caso exemplar de exagero foi o episódio que levou à morte, há exatos dez anos, Edison Tsung Chi Hsueh, que ingressava na prestigiosa Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Na manhã seguinte ao churrasco de recepção aos calouros, o corpo do estudante foi encontrado no fundo da piscina da associação atlética da faculdade. A tradição, porém, não cessou.

A cada temporada de matrículas, o trote volta a preocupar. Mas ele é também uma forma de inserir os calouros na nova fase, algo que os antropólogos costumam chamar de “ritual de passagem”. Trata-se de uma tradição medieval – no sentido temporal da palavra. Sim, a prática do trote persiste desde a Idade Média.

Segundo Antonio Zuin, professor do departamento de Educação da Universidade Federal de São Calos (UFSCar), os candidatos aos cursos das primeiras universidades europeias não podiam frequentar as mesmas salas que os veteranos e, portanto, assistiam às aulas a partir dos “vestíbulos” – local em que eram guardadas as vestimentas dos alunos. “As roupas dos novatos eram retiradas e queimadas, e seus cabelos, raspados. Essas atividades eram justificadas sobretudo pela necessidade de aplicação de medidas profiláticas contra a propagação de doenças”, explica Zuin, que é também autor do livro O Trote na Universidade: Passagens de um Rito de Iniciação.

“Cheguei a ficar com medo do trote, mas depois vi que era bem legal. É uma forma de integração. Quem ficou de fora, acabou se isolando bastante”.

Clarice de Carvalho, ‘bixete’ de 2008 do curso de gestão ambiental da USP

Mais intrigante é a origem do termo “trote”: é uma alusão à forma pela qual os cavalos se movimentam entre a marcha lenta e o galope. A aplicação da palavra ao mundo das relações entre calouro e veterano tem, na visão de Zuin, um significado claramente negativo. É como se o primeiro devesse ser “domesticado” pelo segundo “por meio de práticas vexatórias e dolorosas, que têm a função de esclarecer quais são as características das respectivas identidades”. Paulo Denisar Fraga, filósofo e professor da Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG), ilumina outro termo do “vocabulário do calouro”: “bixo”, que no contexto do ingresso na universidade é utilizado para designar os novos alunos. “É um trocadilho desumanizador, em que a letra ‘x’ indica, depois do vestibular, aquele que está marcado”.

Trote tupiniquim – Se tivesse existido fora do romance de Machado de Assis, Brás Cubas – personagem que, na infância, gostava de trotar sobre escravos – bem poderia ter trazido o trote da Europa para o Brasil. Isso porque, assim como o anti-herói de Memórias Póstumas de Brás Cubas, os responsáveis pela migração da tradição se formaram em direito em Coimbra, como era comum entre membros da elite no século XIX. O trote, então, foi incorporado às “boas-vindas” nos cursos de direito de São Paulo e Pernambuco. Em 1831, ocorreu a primeira morte de que se tem notícia: o estudante Francisco Cunha e Meneses, da Faculdade de Direito do Recife.

“Desde o princípio de sua aplicação, com exceção da questão profilática, o trote já era caracterizado como um rito de iniciação e de passagem, fundamentado numa integração de caráter sadomasoquista”, afirma Zuin. Para ele, a prática serve como possibilidade de “vingar a dor” física e psicológica sofrida por alguém (o veterano, no caso) na universidade. “Para o calouro significa, entre outras coisas, a possibilidade de se sentir integrado na vida universitária e de se conformar com a promessa de que poderá se vingar das pancadas e, sobretudo, humilhações, no próximo ano, quando se tornar veterano”.

Já Paulo Fraga procura iluminar a questão a partir de outro ponto de vista. Ele acredita que a palavra “trote” adquiriu com o tempo um sentido pejorativo e, por isso, deve ser substituída por outros termos. “Recepções alternativas podem ser produtivas para a introdução dos estudantes à vida universitária”. Vitor Loureiro Sion, um “bixo” do curso de história da USP em 2007, concorda. “Ao contrário das brincadeiras de mau gosto que vejo por aí, encontrei pessoas civilizadas comemorando uma conquista importante da vida delas”, lembra. Dennis Padial, ex-calouro do curso de design de games da Universidade Anhembi Morumbi, também guarda boa memória: “O trote é uma maneira de conhecer gente nova. Os veteranos não querem te sacanear, é apenas um jeito de você ser incluído no grupo, de virar amigo deles”.

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“Cortaram meu cabelo, me pintaram inteiro, depilaram minha perna, fizeram eu andar de elefantinho e matar formiga a grito. E eu gostei muito”.

Dennis Padial, ‘bixo’ de 2008 do curso de design de games na Universidade Anhembi Morumbi

Sim, não e talvez – Desde 2000 – um ano após a morte de Edison Tsung Chi Hsueh na piscina da USP -, a universidade proíbe trotes em todos os seus campi. No lugar da atividade, propõe ações de integração entre veteranos e novatos e ainda oferece um serviço de denúncia, para quem não gostar das brincadeiras. “Sabemos que ainda tem gente que pinta alunos e faz ‘pedágio’ em torno da universidade. Os calouros que se sentirem constrangidos, devem procurar o serviço do Disque Trote: 0800 012 10 90”, explicou à reportagem a assessoria da reitoria da universidade.

A Universidade Paulista (Unip) – maior instituição de ensino superior do país em número de alunos – segue a mesma linha. “Proibimos completamente qualquer tipo de trote na universidade. Se os alunos forem pegos, há punição”, conta a assessoria. Ao ser questionada sobre o fato de que, mesmo assim, ainda há trotes em suas unidades, a assessoria afirmou não ter conhecimento dos fatos.

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Uma outra postura oficial ainda impera, porém, entre as instituições: não interferir nas relações entre calouros e veteranos. É o caso da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que deixa claro, no entanto, que não incentiva a zombaria. “Logicamente, não deixaremos nenhum ato de violência acontecer entre nossos alunos e tentamos garantir a segurança”, promete a assessoria da UFRJ.

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