A onda de brasileiros que buscam faculdades de medicina no exterior
A duríssima disputa por uma vaga no Brasil está levando uma turma a tentar alternativas em países vizinhos, como a Argentina
Passar para uma faculdade de medicina virou um daqueles torturantes processos para estudantes brasileiros que, quase sempre, tentam uma, duas, três vezes e não conseguem vencer a dura batalha por um lugar ao sol neste que é o curso mais disputado no país. Em instituições públicas, em média 66 candidatos duelam por uma vaga, concorrência que alcança extraordinários quase 300 aspirantes guerreando por uma única carteira na Universidade Estadual de Campinas, que registra a maior concorrência nacional. A briga dá uma atenuada no circuito das particulares, mas aí são as cifras que espantam — de 10 000 reais mensais para cima. Em meio aos obstáculos, uma crescente leva de jovens vem encontrando alternativas menos onerosas e de boa qualidade em nações vizinhas, como o Paraguai e, mais ainda, a Argentina, onde o afluxo de alunos de nacionalidade brasileira multiplicou-se por cinco desde 2017, chegando a um contingente de 20 000, segundo recente levantamento do governo. “A gente ouve português por todo o campus”, diz a sergipana Renata Mendonça, 24 anos, que estuda na Universidade de Buenos Aires (UBA) e esclarece: “Na sala de aula, a regra é só espanhol”.
O nível do ensino é um atrativo, já que o curso oferecido em algumas das universidades fora, sobretudo nas argentinas, se situa à frente, no ranking das melhores da América Latina, do que é ofertado por ótimas brasileiras. É o caso da UBA e da Nacional de La Plata, ambas públicas, em colocações superiores às da Universidade de Brasília e da Federal de São Paulo, por exemplo. Não existe ali, nem tampouco no sistema paraguaio, nada como vestibular ou o Enem — as vagas são liberadas conforme a demanda, bastando apresentar a documentação e se submeter a uma prova de espanhol em que se exige conhecimento intermediário. A migração é facilitada pelo acordo do Mercosul, que prevê, sem exagerada burocracia, residência temporária de até dois anos (depois, ela precisa ser convertida em permanente) — uma trilha que o presidente Javier Milei avisou que pretende dificultar, tributando os estrangeiros, mas, por ora, ficou no discurso. “A procura segue em escalada, é vantajoso vir para cá”, afirma Monique Lemos, que fez do fenômeno um negócio: é dona de uma assessoria que justamente auxilia brasileiros a desenrolar a papelada e se instalar no país.
Avistam-se as digitais da turma verde e amarela em vários setores do dia a dia, como a moda (nunca tantos pés calçaram Havaianas na cena universitária portenha) e o menu das lanchonetes, nos quais empanadas cedem espaço a campeões de venda como coxinha, pão de queijo, açaí e brigadeiro. O caldo de cultura, que inclui festas movidas a funk e regadas a chope, também agita o ensino superior dos hermanos, menos habituados a eventos tão informais, assim como as associações que se reúnem em torno de esportes, as “atléticas”, com numerosa adesão dos locais. Compartilhar o gosto por futebol ajuda. “São formas de matar a saudade e sentir um pouco do Brasil na Argentina”, diz a presidente de um desses grupos esportivos, Nathalia Lopes, 27 anos, que deixou Brasília´para estudar na Universidade Barceló, outra de Buenos Aires.
Entre os gastos com a universidade (no caso das particulares) e os custos de viver longe de casa, a conta compensa: a estimativa dos que moram na capital argentina é de uns 3 500 reais por mês, enquanto na rota paraguaia sai por volta de 2 500 reais. “Os brasileiros já representam inacreditáveis 90% dos alunos de medicina por aqui”, relatou a VEJA Eduardo Franco, diretor da Universidade do Pacífico (UP), que tem o selo de qualidade da Agência Nacional de Avaliação do Ensino Superior do Paraguai. Bem na fronteira com o Mato Grosso do Sul, ainda fica distante do lar paulistano de Itallo Lemos, 24 anos, que acabou chegando lá por indicação de dois primos, formados naquele campus. “É um sacrifício, sim, mas vale muito a pena ter esse diploma”, pondera Itallo. Embora não seja comum, a invasão brasileira faz, vez ou outra, aflorar manifestações de xenofobia. “Soube de alunos que saíram chorando da sala após o professor falar que a pessoa não sabia nem espanhol, imagina medicina”, lamenta a carioca Maria Clara Viegas, 22 anos, da Universidade Nacional de La Plata. A maioria, porém, se sente à vontade. “Fui bem acolhida, percebo um interesse deles em conhecer nossa cultura”, diz Renata Mendonça, da UBA, que havia tentado três vezes o vestibular no Brasil antes de decidir emigrar.
Os passos que se seguem à formatura são, em geral, envoltos em dúvida — permanecer ou não em solo estrangeiro é o grande ponto de interrogação que paira sobre essa turma. Logo de cara, os que regressam precisam vencer uma barreira, o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos (Revalida), um teste conhecido pela elevada complexidade, pré-requisito para exercer a profissão no Brasil. Embora os currículos sejam parecidos, muita gente não passa de primeira. “A prova é essencial para garantir que apenas pessoas bem formadas cheguem ao mercado”, afirma Julio Braga, do Conselho Federal de Medicina. Após se graduar na Bolívia, o primeiro dos países da América do Sul a ingressar no mapa de brasileiros em busca do canudo, na década de 1980, Alessandra Lima, 28 anos, mergulhou nos livros para enfrentar o Revalida. “Não foi fácil, mas hoje sou médica com orgulho, atuando na minha cidade”, diz ela, que vive em Manaus. Enquanto a ampliação de vagas por aqui se dá vagarosamente, é saltando fronteiras que uma parcela dos brasileiros vira doutor.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890