Por longos dez dias, o presidente Jair Bolsonaro visitou nações do Leste Asiático e do Oriente Médio em busca de investimentos e parcerias. Recebeu promessas e honrarias. Na Arábia Saudita, ouviu do príncipe Mohammed bin Salman que o fundo soberano do país vai investir no Brasil 10 bilhões de dólares nos próximos três anos. No Japão, ganhou apoio às negociações para um acordo de livre-comércio com o Mercosul. Já no Catar, firmou uma cooperação em defesa e saúde. Mas foi na China, onde não houve promessas mas negociações concretas, que Bolsonaro assinou os principais entendimentos sobre comércio feitos na viagem — algo que estava sendo orquestrado por um grupo de trabalho formado há quatro meses. VEJA teve acesso com exclusividade aos termos do acordo negociado pela ministra da Agricultura, Tereza Cristina, com as autoridades chinesas. Pelo documento, os dois países estreitarão seus laços para trocar informações relevantes em relação ao ganho de produtividade no campo, de ambos os lados. Por parte do Brasil, serão compartilhadas tecnologias desenvolvidas nos últimos trinta anos com o mais importante comprador de itens agrícolas. Em contrapartida, os chineses se comprometeram a aumentar as compras de produtos de maior valor agregado e a entregar a expertise em uma área que os cientistas brasileiros ainda não dominam: a edição genética.
Acordos de transferência de tecnologia não são raridade. A diferença do entendimento atual em relação aos demais está em seu escopo. O texto firmado entre Tereza Cristina e o ministro da agricultura chinês Han Changfu estabelece que conhecimentos sobre germoplasma e processamento de sementes, duas áreas de excelência da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) que tornaram o Brasil um dos líderes na produção de alimentos no mundo, serão compartilhados com Pequim.
É a primeira vez que o Brasil abre segredos tão estratégicos com um parceiro tão relevante. Há razão para isso. O país já teve más experiências em pactos anteriores. Em novembro de 2003, por exemplo, o então ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, negociou um acordo com o governo de Moçambique. Parecia inofensivo, afinal era apenas a expansão do projeto de fortalecimento da pesquisa agropecuária da nação africana. Os cientistas brasileiros entregaram de bandeja diversas pesquisas, entre elas a da produção de macadâmia — uma noz africana que serve de base para uma miríade de alimentos, mas que só alcançou grande produtividade em terras paulistas. Em 2007, Moçambique passou a exportar a noz, e tomou um quarto da fatia de mercado antes dominado pelo Brasil. Ficou a lição. “Diferentemente do que aconteceu no passado, o acordo fixa regras que nos colocam de forma mais profissional e estratégica”, afirma Sérgio De Zen, do Departamento de Economia da Escola Superior de Agricultura da USP (Esalq).
O acordo trata de três áreas específicas: tecnologia, finanças e comércio — além de renovar o intercâmbio de políticas agrícolas. Na primeira, os dois países entendem que devem ampliar a troca de cientistas do Laboratório de Ciências Agrícolas China-Brasil e facilitar o compartilhamento de material genético. Ambos se comprometem a colaborar na exploração de grandes culturas, como as de milho, arroz e soja, por meio de pesquisas, extensão da agricultura inteligente, mecanização e processamento de sementes. Por fim, declaram que vão incentivar empresas do agronegócio a entrar no projeto. Na área financeira, a China demonstrou seu poder econômico ao definir que suas companhias estabelecerão parques agroindustriais no Brasil para o processamento da produção agrícola e a fabricação de maquinário. Nesse âmbito, cabe ao Brasil providenciar suporte e serviço adequado às empresas — e, se possível, viabilizar investimentos de companhias nacionais no país asiático. Para a ampliação do comércio bilateral, foi estabelecido que os produtores brasileiros terão maior participação em feiras promocionais e que o governo poderá organizar missões empresariais com o objetivo de vender máquinas e produtos de elevado valor agregado, como proteína animal, etanol e até bebidas alcoólicas.
Ocorrências como a da macadâmia à parte, o intercâmbio de tecnologias e experiências tem potencial para sofisticar a agricultura nacional. Foi tal colaboração, aliás, que tornou o agronegócio brasileiro um caso de sucesso. Foi graças à permissividade e até à generosidade dos Estados Unidos nos anos 1960 que nossos cientistas conseguiram importar tecnologias que possibilitaram os ganhos expressivos de produtividade. Técnicos da Embrapa aprenderam a adaptar fertilizantes para o solo tropical, a selecionar as melhores sementes e a potencializar ração para rebanho com os americanos. “Estabelecer parcerias com instituições que são referência em ciência e tecnologia agropecuária em todo o mundo, como é o caso da China, é estratégico para o Brasil”, diz Celso Moretti, presidente da Embrapa. “Tomadas as devidas precauções quanto à propriedade intelectual e respeitados outros dispositivos legais que protejam a soberania brasileira, podemos avançar ainda mais nesse tipo de parceria.” O êxito dos intercâmbios com os americanos permite que, atualmente, a Embrapa exporte, por ano, mais de 8 000 toneladas de sementes de diversas espécies vegetais para mais de cinquenta países.
O entendimento com a China promete levar a pesquisa nacional a novos patamares. Hoje, a Embrapa é especializada na criação de espécies de plantas por meio de cruzamentos de mudas. Os chineses, por sua vez, se dedicaram à adaptação do DNA das espécies. O nome da tecnologia é complexo: Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas, ou, na sigla em inglês, Crispr. E aplicá-la é ainda mais complicado. Tanto que no Brasil, nos últimos dez meses, não houve sequer um único pedido de patente no segmento de genômica, especialidade voltada para o estudo e a alteração genética. Os Estados Unidos lideram a área, com 872 pedidos neste ano, seguidos muito de perto pela China, com 858. A União Europeia, a terceira colocada, cravou 186. A tecnologia consiste na alteração do DNA embrionário. Ou seja, os cientistas conseguem consertar deficiências genéticas de um organismo reescrevendo seu genoma. Caso o Brasil venha a dominar tal ciência, a agronomia nacional experimentará um avanço impressionante. Os chineses sabem disso. E firmar parcerias com um gigante que abocanha um quarto do comércio exterior do país mas que tem uma relação política distante é assunto delicado. “O governo tem o discurso de desenvolvimento econômico, de fortalecer a economia. E eu vejo que essa ação mais técnica da ministra da Agricultura vai nessa direção, independentemente do alinhamento ideológico com o parceiro comercial”, avalia Reginaldo Minaré, consultor da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
Bem diferentes dos resultados obtidos na China, contudo, foram os frutos colhidos nas outras viagens de Bolsonaro. Sem trabalho sólido prévio, os acordos não passam de promessas descompromissadas. Não se sabe nem mesmo para onde serão destinados, por exemplo, os 10 bilhões de dólares prometidos pelos sauditas para os próximos três anos. O ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, afirma que só daqui a duas semanas vai ser montado um “conselho” para estabelecer a finalidade dos recursos. Mais do que os salamaleques nos palácios dourados da realeza bilionária da Arábia e do Golfo Pérsico, são acordos do gênero do que foi fechado por Tereza Cristina que permitem avanços científicos e tecnológicos. Ainda uma exceção nas agendas das viagens presidenciais, eles é que garantem que sejam bem aproveitadas. Que outros sejam fechados em breve.
Publicado em VEJA de 6 de novembro de 2019, edição nº 2659