O economista e ex-ministro Roberto Campos, avô do atual presidente do Banco Central, é o autor de uma frase que, sob diversos aspectos, sintetiza uma triste sina brasileira: “O Brasil nunca perde a oportunidade de perder oportunidades”. A velha máxima mais uma vez provou a sua validade. Poucas vezes o país deparou com condições tão favoráveis para crescer. Na nova era ambiental, o Brasil destaca-se por ter, entre as maiores economias do mundo, a matriz energética mais sustentável, o que o colocaria em posição de vantagem para liderar as transformações que estão em curso. Somos também o maior exportador de alimentos do planeta, com um agronegócio vigoroso e inovador que responde por quase 25% do produto interno bruto. Na geopolítica, o cenário é igualmente favorável. Enquanto a China coloca o pé no freio e a Rússia está em guerra, o Brasil é, entre os grandes emergentes, o menos exposto às turbulências internacionais. Tudo isso poderia ser aproveitado para o país deslanchar de vez. Contudo, estamos — de novo — condenados à nossa vocação de perder oportunidades.
Desta vez, boa parte da culpa deve ser atribuída à cartilha econômica que os governos petistas costumam adotar: a que dá prioridade aos gastos. Na quarta-feira 8, o Banco Central revelou que as contas públicas fecharam o mês de setembro com déficit primário de 18 bilhões de reais, sendo que no mesmo mês de 2022 houve superávit de 10,9 bilhões de reais. No acumulado de doze meses, o setor público consolidado — formado por União, estados, municípios e empresas estatais — registrou déficit de 102 bilhões de reais, o equivalente a 0,97% do PIB. É certo, portanto, que as contas públicas fecharão 2023 no vermelho, após breve respiro alcançado no ano passado. A conclusão óbvia: os números estão ruins porque o governo Lula desde o início vem gastando mais do que arrecada — e promete gastar mais ainda.
Antes mesmo de os números terem vindo a público, o presidente Lula sugeriu uma alteração na meta fiscal e mandou às favas a promessa de zerar o déficit público no ano que vem, jogando fora o esforço que seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, vinha fazendo. A declaração pegou o mercado financeiro de surpresa e provocou reação de pesos-pesados da política nacional. Presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira afirmou que “se não tem meta, tem consequência”. Com as más notícias se avolumando, percebe-se agora que a fala de Lula foi uma espécie de profecia. “É uma frustração completa, jogamos a toalha antes da hora”, disse a VEJA Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Cental. “O governo não está disposto a fazer o mínimo de esforço para poder conter gastos.”
Sem disciplina fiscal, as perspectivas são alarmantes. O economista Alexandre Schwartsman, colunista de VEJA, diz que houve um aumento de 3% do déficit primário (incluindo União, estados, municípios e empresas estatais) de janeiro a setembro de 2023 versus igual período de 2022. Ressalte-se mais uma vez que, no ano passado, o governo registrou um superávit de 1,2% do PIB, que provavelmente se tornará um déficit de 1,8% neste ano, agora com o país sob a regência de Lula.
É interessante observar que o bom resultado fiscal de 2022 foi alcançado mesmo em um contexto eleitoral, período em que os governantes se dispõem a abrir os cofres para atrair popularidade. Isso ocorreu porque o patamar de gasto primário da União, aquele antes de juros e amortizações, voltou ao nível razoável de 18% do PIB. Durante a campanha, Lula afirmou que isso seria insuficiente. Para as necessidades de seu governo, o patamar deveria voltar a 19,5%. A PEC da Transição atendeu a esse desejo e contratou 150 bilhões de reais em novos investimentos, que agora alimentam o desequilíbrio fiscal. “Deveríamos primeiro criar uma condição superavitária para só depois aumentar gastos”, diz o economista Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).
Está no DNA do Partido dos Trabalhadores gerir as contas públicas pelo caminho do aumento de receitas, e não do corte de despesas. Os dogmas petistas também pressupõem ingerência do governo nas empresas estatais. Em outubro, o conselho de administração da Petrobras, com maioria de indicados pelo governo federal, propôs a revisão de seu estatuto para que sejam permitidas indicações políticas em postos-chave da companhia. Combinadas, iniciativas como essa afetam a credibilidade do país e minam a confiança dos investidores. “O governo está se afastando de políticas que antes contribuíam para fortalecer a saúde econômica do Brasil no futuro”, diz Alex Agostini, economista-chefe da agência de classificação de risco Austin Rating.
O corte de gastos seria essencial, especialmente em um país sufocado por uma das cargas tributárias mais altas do mundo, sem margem para aumento de impostos. Tal premissa, contudo, está longe do horizonte petista. Nos últimos meses, o ministro Haddad tem procurado obsessivamente meios de elevar a arrecadação. Entre as propostas na mesa estão a tributação de importados de pequeno valor, apostas esportivas e empresas offshore. Segundo cálculos da Receita Federal, essas medidas gerariam 165 bilhões de reais em receitas extras. O problema é que elas não têm se materializado. Mais que isso: foram superestimadas, dado o otimismo exagerado com os rumos da economia. Ao contrário do que o governo previa, o nível de consumo segue baixo, o que é reflexo sobretudo do alto endividamento das famílias.
Os governos que gastam demais costumam gerar danos severos à economia. Em um primeiro momento, o avanço dos investimentos públicos pode até provocar algum crescimento do PIB, mas ele será seguido no longo prazo por crises gigantescas. Foi assim, lembre-se, nos anos Dilma Rousseff, quando o Brasil enfrentou a pior recessão da sua história. Pelo visto, o governo Lula parece disposto a seguir o mesmo caminho. O Brasil deverá encerrar 2023 com um endividamento público que equivale a 76% do PIB e projeções indicam que, a continuar na toada gastadora, a proporção chegará a 84% em 2026. No final do ano passado, o índice foi de 73% do PIB.
Governos gastadores são amigos da inflação, que sempre está à espreita, aguardando uma oportunidade para voltar. Nesse aspecto, chama atenção o fato de Lula ter pressionado o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, para que acelere o ritmo de corte da Selic, a taxa básica de juros da economia. Ora, uma política fiscal irresponsável é o que obrigaria o BC a aumentar a Selic — o governo federal, portanto, seria o maior responsável por esse movimento.
No rol das oportunidades perdidas, a reforma tributária deverá também ocupar lugar de destaque. Embora as novas regras aprovadas no plenário do Senado Federal sejam melhores do que as antigas, fato é que as mudanças estão longe do ideal. O texto admitiu tantas exceções, resultantes de pressões políticas e setoriais, que sua premissa original de reduzir a carga de impostos não será cumprida. O Brasil deverá ter uma das maiores taxas de IVA (imposto sobre valor agregado) do mundo, algo injusto para uma sociedade que recebe serviços precários dos entes públicos. “Há o risco de criarmos um monstrengo tributário”, diz Felipe Salto, economista-chefe da gestora Warren Investimentos. Roberto Campos tinha razão. A lista de oportunidades desperdiçadas pelo Brasil não para de crescer.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2023, edição nº 2867