Transformação digital é um tema que fez muita gente torcer o nariz nos últimos anos. Mas, com a pandemia do novo coronavírus e as medidas de isolamento adotadas pelos governos mundo afora, ele voltou à tona com toda força e está modificando costumes. Uma pesquisa desenvolvida pela EY Parthenon, divisão de estratégia da consultoria global Ernst & Young, em parceria com VEJA ouviu 1.134 pessoas a partir de 18 anos para apontar as mudanças que a pandemia trouxe para o dia a dia dos consumidores. Para a maioria deles, o “novo normal” no consumo será visitar menos as lojas físicas, gastar menos com produtos não essenciais e, sobretudo, encomendar mais itens via lojas on-line. Nos últimos meses, não foram poucos que conheceram e se adaptaram ao e-commerce. Quem nunca comprou, experimentou. E aqueles que já utilizavam o canal esporadicamente transformaram o ato em algo corriqueiro. Mudanças de hábitos e padrões de comportamento que vinham se desenhando lentamente tiveram uma forte aceleração com a pandemia de coronavírus. Essa digitalização veio para ficar.
Números do estudo intitulado “EY Future Consumer Index” mostram que o consumidor nunca mais vai comprar como antes. Dentre os entrevistados, 72% responderam que estão mais conscientes sobre higiene pessoal e limpeza; 68% passaram a cozinhar mais as suas refeições; e 63% vão visitar menos a loja física. Para 60% deles, os gastos com itens supérfluos do dia a dia – como moda e cosméticos – vão ficar em segundo plano. Com esse novo cenário, conseguiram se sobressair aqueles negócios que apostaram em criar uma estrutura digital nos últimos anos e chegaram preparadas para suprimir o fechamento do canal físico do varejo durante o período de maior contágio pela enfermidade no país. “Notamos nos últimos meses que o público consumidor está cada vez maior. E ele é formado tanto por pessoas que não costumavam comprar como por aqueles que passaram a comprar com maior frequência. Isso é fruto de uma tendência que tem se acelerado com a pandemia”, nota Stelleo Tolda, COO do Mercado Livre, uma das maiores plataformas de e-commerce na América Latina. “Com o fechamento do comércio físico, ficou muito claro para as pequenas e médias empresas que buscar soluções digitais para o modelo de negócio, seja a venda por meio de marketplace ou através de um site próprio, é imprescindível.”
A alteração dos hábitos fez com que várias modalidades de venda on-line crescessem nos últimos meses além do comércio elêtronico tradicional. Que atire o primeiro talher quem não utilizou, ao menos uma vez, o e-commerce para comprar alguma refeição nos últimos meses. Segundo o estudo da EY, 41% dos consumidores ouvidos compraram mais por meio de serviços de entrega de refeições devido ao Covid-19.
De olho nesse potencial, Mercado Livre, Magazine Luiza e Via Varejo, dona das Casas Bahia e do Ponto Frio, aceleraram a venda de produtos de alimentação e farmacêuticos nos últimos meses. “O segredo do varejo alimentar no e-commerce é prontidão de entrega. Com a estruturação do modelo digital e a evolução da logística nas grandes metrópoles brasileiras, esses players passaram a investir mais nessa compra de recorrência”, explica Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC). “E esse tipo de venda sempre foi o sonho de consumo de qualquer e-commerce. Combinar o valor do tíquete médio alto, que essas empresas têm pela oferta robusta de bens duráveis, e a venda por recorrência é o que faz com que se comece a oferecer uma oferta parecida com o que a Amazon oferece hoje, nos EUA”. O próximo passo desse jogo seria, portanto, atrair o consumidor para um sistema de assinatura que ofereça descontos progressivos em frete e em compras recorrentes.
Ferramentas existentes viraram alternativa
Para a Via Varejo, a pandemia de coronavírus foi um tsunami. Com o fechamento das lojas, da noite para o dia, cerca de 70% do faturamento da holding que administra Casas Bahia e Ponto Frio foi corroído. Em pouco tempo, no entanto, a empresa estruturou e colocou de pé um modelo de vendas até então não praticado pelas grandes redes: a venda pelo WhatsApp. Intitulado “Me Chama no Zap”, a alternativa encontrada pela rede para manter parte de seus vendedores ativos, mesmo trabalhando de casa, deu tão certo que irá permanecer no período pós-pandemia. “Para mim, o maior desafio era justamente romper esse paradigma de fazer a transformação digital com o nosso time de vendas. Com a venda pelo WhatsApp, nós conseguimos. Se tem algum lado positivo dessa crise foi termos rompido esse paradigma”, diz Roberto Fulcherberguer, CEO da Via Varejo. O que era prejuízo no início, segundo ele, virou até lucro. “A hora em que a pandemia passar, o nosso vendedor vai continuar fazendo a venda on-line, só que na loja. No momento em que ele não estiver atendendo o cliente na unidade, ofertará nossos produtos pelo smartphone”, complementa.
Segundo os números da EY, 70% dos consumidores se sentem incomodados de voltar imediatamente aos shopping centers – para os 30% restantes, o sentimento é “neutro” ou “confortável”. Nesse cenário, o delivery de alimentação Rappi expandiu sua oferta e criou recentemente o Rappi Entretenimento. A proposta é avançar no conceito de “superapp”, um aplicativo de múltiplas funções, ainda pouco difundido no Brasil, mas muito popular na China. “Não é um jogo fácil. É necessário entender o cliente e desenvolver suas necessidades para que ele entenda a oferta e tenha uma melhor experiência”, diz Sergio Saraiva, CEO da Rappi no Brasil.
Outro termo popular entre chineses, mas pouco conhecido ainda no nosso país, é conhecido como livestreaming, em que influenciadores digitais utilizam sua gama de seguidores para realizar ofertas de produtos em tempo real na internet – a transação, por lá, acontece no mesmo instante, por meio de dados pré-cadastrados de consumidores no aplicativo. Isso tende a se popularizar no Brasil no cenário pós-pandemia. “A China foi forçada a inovar devido a outras epidemias que ocorreram no país. O vírus da SARS, por exemplo, forçou mudanças na estruturação de códigos de barras, na implementação do delivery e na criação do pagamento via QR Code”, diz Andreas Blazoudakis, cofundador da Movile e atual presidente do conselho de inovação do Delivery Center, que trabalha na implementação do livestreaming no Brasil em parceria com lojistas de shoppings do Rio de Janeiro e de São Paulo. “É um projeto que está em fase de testes e deve ser implementado no país daqui a 60 ou, no máximo, 90 dias”, conjectura.
Pagamentos digitais
Algumas mudanças de comportamento dos consumidores no longo prazo envolvem um maior cuidado na hora da compra. Segundo o estudo desenvolvido pela EY, 55% dos entrevistados concordam em usar entrega sem contato ou realizar pagamentos sem dinheiro para evitar tocar em algo durante a compra. Para 72% das pessoas, a adoção de serviços bancários on-line será, cada vez mais, uma realidade no longo prazo. Paulo Caffarelli, CEO da Cielo, maior empresa de pagamentos eletrônicos do país, já vê isso acontecer. “Notamos que as vendas via QR Code aumentaram 10% em relação ao período pré-pandemia. O Contactless, que é o pagamento de uma compra sem tocar na maquininha, aumentou 15%. São soluções que já existiam e que foram aceleradas com a crise”, diz ele. “Hoje, mais de 50% das vendas pela internet no país passam por nós. Temos notado um incremento nesse processo nos últimos meses”, revela Caffarelli. Para 63% dos consumidores ouvidos, o dinheiro vivo será menos usado num futuro próximo. E 40% concordam em usar mais meios on-line para realizar suas compras.
Em um mundo mais digitalizado e atento a questões relacionadas à sustentabilidade e aos valores éticos dos negócios, as restrições financeiras mudarão padrões de consumo. Marcas e empresas que souberem compreender esse novo momento e se posicionar de forma adequada conseguirão acompanhar as transformações do mercado e prosperar no mundo pós-Covid. Ao que tudo indica, as filas estão com os dias contados.