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‘Pecado da reforma é o corporativismo de Bolsonaro’, diz Ana Carla Abrão

Referência no tema, a economista diz que, apesar de ser uma boa proposta, texto do governo impede ganho fiscal a curto prazo

Por Victor Irajá Atualizado em 4 jun 2024, 15h25 - Publicado em 6 set 2020, 08h00
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  • Um dos principais nomes do país em matéria de estrutura do serviço público, Ana Carla Abrão está aliviada com o envio da proposta de reforma administrativa por parte do governo de Jair Bolsonaro. Depois de meses descansando na gaveta do presidente, a matéria promete caminhar de vento em popa no Congresso Nacional. Ao lado do ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga e do jurista Carlos Ari Sundfeld, a economista Ana Carla estruturou ideias para modernizar a máquina pública. A chefe da consultoria Oliver Wyman no Brasil, na qual é sócia nas práticas de finanças & risco e de políticas públicas, argumenta, nesta entrevista a VEJA, que a proposta engloba pontos positivos, mas que peca ao não atingir os atuais servidores.

    Quais as suas impressões sobre a reforma? O ponto positivo é que Bolsonaro, finalmente, tirou a proposta da gaveta. Como é prerrogativa exclusiva dele o encaminhamento da proposta, a discussão só começa quando decide mandá-la. Ele cedeu às diversas pressões que vinham da equipe econômica, do Paulo Guedes, e do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e da sociedade também. Existia uma cobrança muito clara. Bolsonaro mandou uma proposta bem picotada em relação ao que se discutia originalmente, mas conceitualmente atinge pontos muito relevantes. Conceitualmente, a proposta é muito bem formulada. Há um erro em se discutir somente a questão da estabilidade, que abarca muita resistência, e, neste ponto, a reforma também está bem estruturada, porque mantém o pressuposto para carreiras de Estado – vamos ter que discutir o que é isso. Do ponto de vista técnico, é uma boa proposta. Acaba com imoralidades como promoções e progressões automáticas, férias de 60 dias, permite redução de jornada de trabalho. Não sei se é a melhor estratégia do ponto de vista político, mas ataca pontos muito relevantes que podem, sim, mudar completamente a forma de funcionamento da máquina pública.

    Que preceitos são esses? Carreiras bem estruturadas, enxutas, com categorias determinadas. Do ponto de vista de ter sido encaminhada é ótimo. O pecado original é fruto do corporativismo de Bolsonaro, que não quis mexer com as atuais carreiras, excluir os servidores já na ativa. Essa determinação elimina qualquer chance de ganho fiscal com a aprovação da reforma, a curto e médio prazo. Embora precisemos das próximas fases para calcular o impacto, o respiro vai se diluir em dez, quinze anos para começarmos a percebê-los. Outro risco é o de judicialização. Coexistir modelos tão distintos acarreta em uma possibilidade de contaminar o modelo novo.

    Como assim? Imagine um auditor fiscal que passou no concurso em 2018 e outro que entrará em 2022. Eles vão ter carreiras completamente distintas. O primeiro, em seis anos está no topo da carreira e ganhando o dobro. O segundo estará se for um bom servidor, no meio da carreira – e os dois estão cumprindo as mesmas funções. O Judiciário concederia a isonomia na mesma hora. Existem outras complexidades, como o tratamento às carreiras do Judiciário – o que nem o governo sabe. Essa discussão terá que caminhar ao longo do processo no Legislativo, vamos ver. Ficará claro na regulamentação.

    Um dos pontos mais polêmicos foi o aumento de liberdade para o presidente para extinguir órgãos e funções. Como vê a prerrogativa? Eu leio de outra forma do que tem saído na imprensa. Esse dispositivo é algo conceitual. Destruir o Ibama ou o Inpe, o Bolsonaro já pode, mesmo que não passe pelo Congresso Nacional. Basta ele esvaziar o órgão, enxugar o orçamento, colocar gente lá que não faça nada e atenda às determinações dele. Mas se restringirmos no projeto a autonomia aos órgãos da administração direta, creio que essa possibilidade seja positiva porque garante alguma autonomia para o chefe do governo, que hoje é inexistente. Ele teria maior autonomia para estruturar sua gestão no início de um mandato, por exemplo. Interferir, acabar e destruir, o presidente poderá sempre fazer. Essa premissa também não configura qualquer poder absoluto. Existem outros mecanismos de controle, como as agências reguladoras.

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    Para além da ideologia, mudanças em série não causam ônus para o pagador de impostos? Isso os governantes já fazem, só precisa entregar um monte de anel ao Congresso, tornando o processo até muito mais caro. Eu respeito muito o Parlamento, mas no regime presidencialista o Legislativo, em algumas situações, está apenas travando mandatos concedidos ao presidente da República, que quer direcionar a estrutura dele: quais órgãos são relevantes, quantos funcionários terá, que secretarias vai fundir ou criar. É o mínimo que um presidente pode dispor para começar o seu governo. E isso virou, infelizmente, uma fonte de negociação, inclusive por cargos, o que é muito ruim.

    Quais os critérios que devem ser adotados em processos de análise de desempenho dos servidores? O governo ainda não propôs e isso deve ser regulamentado por projeto de lei. Esse talvez seja o processo mais importante de todos, dentro do escopo desta transformação, do ponto de vista de cultura, de resultados e fiscal. Deve existir uma boa lei, que defina as bases deste processo. O governo tem de pensar em critérios sólidos para adotar um sistema como esse. Quais serão? Comprometimento, metas? Existem várias fases e essa questão deve culminar em processos. Esse mecanismo existe no mundo todo: Colômbia, Chile, Inglaterra, Austrália, Nova Zelândia. No Brasil, não existe o modelo correto e sequer está institucionalizado. Precisamos regulamentar a demissão por baixo desempenho e o detalhamento de que modelo vamos escolher, além do acompanhamento e monitoramento que vamos inserir. Se conseguirmos avançar neste ponto e o modelo seja adequado, não tenho dúvida que começamos a mudar o jogo.

    Que modelos são os ideais, para coibir ingerências políticas? Existe modelo mais centralizado, que eu particularmente gosto. Consiste em ter uma agência ou um comitê central de RH do serviço público, que define o modelo de avaliação, monitora as avaliações. E existe o modelo mais descentralizado, mas que demanda que as decisões sejam tomadas de forma colegiada. Assim, garante-se alguma blindagem, de perseguição ou proteção do servidor por parte de autoridades. Não sei que modelo o governo vai propor, mas existem modelos consagrados e que funcionam.

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    Quais as principais questões em torno da estabilidade do funcionalismo? Ela é necessária para coibir esse tipo de interferência? A estabilidade existe no mundo todo e não precisa ser demonizada. Não tem em qualquer lugar na Constituição que funcionário público é indemissível. A gente estruturou nossa estabilidade de forma muito mais ampla do que deveria, fruto da Constituinte, e atravessamos várias capturas do Estado por parte das corporações, que impedem demissões até mesmo por falta grave. Não é possível que tenhamos de esperar o trânsito em julgado para demitir uma pessoa que mata alguém e é presa em flagrante, por exemplo, ou corrompe o contribuinte. Não dá para esperar dez anos, com essa pessoa recebendo dinheiro público. Temos de tipificar o que é falta grave. Agora, para que existe a estabilidade do médico e do professor? O novo governante vai mandar todos os professores que não sejam do partido dele embora? Claro que não. Precisamos entender que a vida é mais complexa do que isso. O projeto diz que existem carreiras de Estado e as que têm vínculo empregatício.

    O que define carreira de Estado? Isso tem de ser muito bem analisado, senão todos vão querer entrar no barco. São definições claras: servidores que servem ao Estado, não a governos. Fiscais, juízes, delegados são alguns exemplos, aquelas cuja influência pode ser deletéria se a pessoa não tiver a devida independência. O que é necessário, agora, é esmiuçar cada uma delas. Parte-se do pressuposto de que o servidor é honesto. Não é só a estabilidade. Veja os ministros. Eles não têm estabilidade, mas o presidente mandou, ele cumpre ou sai. Essa discussão tem de ser feita de forma muito responsável.

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    Do ponto de vista das carreiras, o que precisa ser feito? A partir de uma revisão geral, cargos obsoletos acabam. O principal problema são as várias carreiras que têm atribuições similares. Precisamos analisar as que podem ser extinguidas ou fundidas.

    O que mudou no ambiente de aceitação, tanto por parte do Parlamento como na sociedade civil? Fizemos uma conexão tardia entre o custo do serviço público e o que a população recebe. Os servidores têm uma insatisfação gigante em relação às estruturas, porque os recursos não chegam, faltam insumos ou condições de trabalho, e percebemos também o escancaramento da desigualdade entre os setores público e privado. Um grupo está blindado, tem ganhos reais, proteção contra as intempéries, enquanto o outro, desemprega e corta salário, além de exigir muito mais. Essa simetria, hoje, é intolerável por parte da sociedade. Os serviços públicos estão se deteriorando dia após dia, e as pessoas agora associam isso a essa máquina, que só se retroalimenta e gasta cada vez mais. Cada vez que entra mais dinheiro, uma parcela maior vai financiar essa estrutura. E isso não é culpa do servidor, mas do modelo que prejudica o cidadão e ele próprio. O modelo produziu algo ruim para todos, inclusive para os índices de desigualdade, produtividade e o crescimento econômico. Com o tempo, esse debate foi incorporado à percepção pública.

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