Poucos governantes conhecem tão bem o peso da Petrobras quanto o presidente Lula. Em seu segundo mandato, entre 2007 e 2010, ele transformou a empresa em peça-chave de sua estratégia política — seja para desgastar a oposição, acusando-a de querer privatizar a companhia, seja para fazer propaganda, comparando a descoberta das reservas do pré-sal a um bilhete premiado que levaria o Brasil, finalmente, rumo ao desenvolvimento. No governo de Dilma Rousseff, o petista teve de lidar com o outro lado da moeda quando a Lava-Jato descobriu um esquema monumental de corrupção que se abastecia de contratos superfaturados da empresa. As investigações atingiram diferentes partidos políticos, resultaram na prisão de Lula e contribuíram para o impeachment de Dilma. A petrolífera não é protagonista apenas na economia. Com um plano de investimento bilionário, projetos com forte apelo eleitoral e contratos que despertam a cobiça empresarial dentro e fora do Brasil, ela pode influenciar na redenção ou desestruturação de qualquer gestão e até de carreiras políticas. Por isso, tornou-se um cenário conhecido de disputa de poder.
Considerada a joia da coroa entre as empresas brasileiras de capital aberto controladas pelo Estado, a Petrobras é alvo permanente de cobiça. Em 2005, o então presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, exigiu a diretoria que “fura poços” ao negociar apoio a Lula. Na ocasião, o rei do baixo clero rendeu homenagem à regra segundo a qual quem está fora da companhia quer entrar nela de qualquer jeito e ter seu rincão de influência. No atual mandato de Lula, a queda de braço tem contornos um pouco diferentes e é travada dentro da própria equipe do presidente. As faces mais visíveis são o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, ex-senador pelo PSD, e o presidente da companhia, Jean Paul Prates, ex-senador pelo PT. Os dois não se entendem desde sempre. No último embate, divergiram sobre o pagamento de dividendos extras aos acionistas. Silveira, que tem ascendência sobre o conselho de administração da Petrobras, foi contrário à iniciativa e contou com o apoio do chefe da Casa Civil, Rui Costa. Já Prates, que controla a diretoria, queria o pagamento de pelo menos metade dos dividendos extras. Chamado a arbitrar a disputa, Lula deu razão à dupla Silveira e Costa, para quem o desembolso de extras aos acionistas poderia prejudicar o plano de investimentos da Petrobras.
O argumento soou como música aos ouvidos de Lula, que não cansa de repetir, numa ladainha palanqueira, que a companhia não serve aos propósitos do mercado, mas ao povo brasileiro. Intervencionista por natureza, o presidente barrou o pagamento e causou uma enorme confusão. Na área econômica, a decisão provocou de imediato uma desvalorização bilionária do valor de mercado da companhia. Na seara política, fez o presidente cogitar a demissão de Prates, com quem não tem uma boa relação — ou uma relação próxima o bastante que lhe permita dar ordens a qualquer hora e sem nenhum pudor. Emissários de Lula chegaram a sondar o presidente do BNDES, o ex-senador petista Aloizio Mercadante, para ver se ele aceita trocar o banco de fomento pela petrolífera. Rui Costa, que há tempos tenta colocar um nome de sua confiança no comando da Petrobras, também se movimentou e sugeriu alternativas, articulando sempre nos bastidores, como é de seu feitio. A queda de Prates parecia iminente, mas não ocorreu até o fechamento desta edição. A demissão até perdeu um pouco do caráter de urgência que era anunciado pelos desafetos de Prates, mas continua considerada provável dentro do governo e do PT, principalmente pelo fato de Lula não gostar do tipo de diálogo — distante e formal — que estabeleceu com Prates.
Até aqui, alguns fatores ajudaram a garantir uma sobrevida ao presidente da Petrobras. Um deles foi a entrada no circuito do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Em conversa com Lula, ele defendeu o pagamento dos dividendos extras, alegando que não prejudicaria o plano de investimentos da Petrobras e, de quebra, ajudaria as contas públicas, já que a União receberia entre 6 bilhões e 13 bilhões de reais no rateio. Ciente do potencial de combustão do caso, Haddad não pediu nem pela permanência nem pela saída de Prates, mas deu a entender ao presidente que ele decidiu a questão dos dividendos sem ter acesso a todas as informações necessárias. Na prática, o ministro se colocou mais uma vez em trincheira oposta à de Rui Costa, que é crítico de seu plano de ajuste fiscal, e ainda ganhou o direito de indicar um servidor da Fazenda para o conselho de administração da Petrobras. Isso significa que, a partir de agora, Rui Costa terá de rivalizar com Haddad também em assuntos petrolíferos. O embate entre os dois, uma marca do atual governo, ganha uma nova arena. Outro motivo que jogou a favor da sobrevida de Prates foi o fator Mercadante, que até agora não se mostrou entusiasmado com a possibilidade de mudar de cargo.
Líder do PT no Senado durante o segundo mandato de Lula, Mercadante não é propriamente benquisto pelo mercado, por evocar — com ou sem razão — o temor de intervencionismo na companhia. Ele foi chefe da Casa Civil na gestão Dilma Rousseff, que provocou prejuízos bilionários à Petrobras ao tentar baixar na marra o preço dos combustíveis. “A tentativa de ingerência é péssima para a Petrobras e as demais empresas da Bolsa em que o governo tem algum tipo de participação acionária, como Eletrobras e Vale. É ruim para o mercado de capitais como um todo”, diz Alvaro Bandeira, coordenador da Apimec Brasil, entidade reguladora do mercado de capitais. Mesmo que haja mudança na presidência da Petrobras, o imbróglio não terminará tão cedo. Os interesses em torno da empresa são compatíveis com o seu tamanho. A companhia planeja investir 500 bilhões de reais entre 2024 e 2028. Recentemente, lançou um edital para patrocinar com 250 milhões de reais projetos culturais. Essa dinheirama desperta o interesse de grandes empresas — como empreiteiras pilhadas no esquema do petrolão que vivem uma fase de redenção sob o governo Lula — e também de políticos. A decisão sobre o valor e o local de determinado investimento pode render dividendos eleitorais, fortalecer um governante, aproximar autoridades de financiadores de campanha e transformar políticos em interlocutores preferenciais dentro da companhia.
As oportunidades de negócios, ascensão e confusão são gigantescas. Para explorar todo o potencial em jogo, é fundamental estar bem posicionado. Os ministros Rui Costa e Alexandre Silveira, por exemplo, costumam defender aquilo que Lula gosta de ouvir e falar — principalmente a tese de que a Petrobras deve puxar os investimentos no Brasil, seguindo um roteiro escrito pelo Palácio do Planalto. Prates, na versão de seus rivais, tem uma postura mais independente — ou pró-mercado. Apesar disso, segundo um dos petistas mais influentes, o que incomoda mesmo Lula é o fato de o presidente da Petrobras não trabalhar em perfeita sintonia com o mandatário, o que implicaria certa subserviência. “O Prates veio do governo Lula. Uma troca por outro nome seria como trocar seis por meia dúzia, mas o que o mercado não gosta é de ingerência”, diz Marcelo Vieira, chefe da mesa de renda variável da Ville Capital, escritório de agentes autônomos da XP. Receita testada e reprovada, o intervencionismo em empresas de capital aberto já rendeu perdas de bilhões de reais a acionistas e aos cofres públicos, além de processos rumorosos por corrupção. Lula é um entusiasta da ideia de aumentar o peso do Planalto nas estatais, mas seu governo não parece saber o que espera de fato da Petrobras.
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2024, edição nº 2888