Nos meandros da Justiça brasileira há uma categoria rara de processos que, esquecidos no passado, de uma hora para outra renascem de forma surpreendente. É o caso da falência de uma construtora conhecida no Rio de Janeiro, ocorrido há quase três décadas, que promete causar um prejuízo de 600 milhões de reais a uma das principais instituições financeiras do país. Um acórdão unânime da 9ª Câmara Cível do Rio, seguindo parecer do Ministério Público, indeferiu recurso do banco Bradesco contra a decisão, em segunda instância, que favorece a massa falida de uma construtora liquidada no fim da década de 90, a Montreal Engenharia. De acordo com a sentença, o banco se beneficiou indevidamente de um acordo com a construtora e se apropriou de bens que deveriam ter sido destinados ao pagamento das dívidas trabalhistas e com o Fisco.
Constituída nos anos 1950, a Montreal foi uma potência no período militar, quando costumava ser contratada para grandes obras públicas. Com a ascensão de outros gigantes do ramo, como Mendes Júnior, Camargo Corrêa e Odebrecht, entrou em um longo declínio que culminou com o termo legal de sua falência em 1995, o que caracterizava o estado de bancarrota antes da atual lei de recuperação judicial, em vigor desde 2005. Durante o seu processo falimentar, a empresa firmou em 1998 um acordo com um de seus principais credores, o Bradesco. Havia uma dívida avaliada, à época, em 32 milhões de reais, em decorrência de empréstimo para a compra de equipamentos, como guindastes e tratores, e a empreiteira cedeu os mesmos ativos ao banco em troca da quitação do débito. Isso, no entanto, não poderia ter sido feito por mudar as bases da massa falida, passar na frente de outros credores e prejudicar a continuidade das operações da empresa.
O Bradesco aceitou os ativos e os repassou para a holding paranaense de infraestrutura Inepar, em troca de ações da empresa, avaliadas então em 20,4 milhões de reais. Os outros credores da Montreal, por sua vez, ficaram de mãos abanando. Isso até 2018, quando o escritório Rücker & Longo Advogados recebeu a missão de fazer um pente-fino no processo e encontrou o contrato milionário datado de vinte anos antes. O processo foi reaberto com a alegação de que o Bradesco não poderia ter firmado o acordo com a empresa em meio ao processo falimentar, e pedia a devolução dos 20,4 milhões de reais de 1998, que chegam a 600 milhões de reais em valores atuais.
Em sua defesa, tentando evitar o pagamento da dívida, o Bradesco alegou que a transação foi efetuada antes da declaração da falência e alegou que tal negociação é hoje permitida pela legislação atual. A Justiça, no entanto, não pensa assim. O caso teve sentenças contra o banco tanto na primeira quanto na segunda instâncias. Representantes do escritório Sergio Bermudes Advogados, que representa o Bradesco no processo, informam que a instituição estuda recorrer agora ao Superior Tribunal de Justiça. Ainda que consiga abrir novo recurso, o banco precisará provisionar a possível perda de mais de meio bilhão de reais em seus próximos balanços de resultados.
Publicado em VEJA de 12 de outubro de 2022, edição nº 2810