O governo chinês não costuma ver com bons olhos iniciativas que fogem de seu controle e tem por hábito agir com rigor em tais situações, principalmente em assuntos de política e economia. Foi o que aconteceu na última segunda-feira, 21, quando desferiu um pesado golpe contra o avanço das criptomoedas em seu território. O uso do bitcoin foi restringido e determinou-se o bloqueio das poderosas redes de computadores que validam as transações dessas divisas digitais nos país — também conhecidas como mineradoras. Como a China é responsável por cerca de 75% do processamento computacional do ativo, a cotação do bitcoin despencou mais de 10%, o equivalente a cerca de 4 000 dólares. Semanas antes, o Comitê de Supervisão Bancária da Basileia, que estabelece regras para bancos de todo o mundo, também lançou um sinal de alerta contra o bitcoin e seus correlatos ao divulgar um relatório defendendo maior regulamentação em nome da estabilidade financeira global e da mitigação de riscos aos bancos.
Antes dos dois episódios, o frenesi em torno das criptomoedas havia agitado o noticiário policial com um novo tipo de crime: o sequestro cibernético com resgate em dinheiro virtual. No dia 6 de maio, o maior oleoduto dos Estados Unidos, o Colonial Pipeline, teve as operações suspensas por um ataque de hackers e ficou cinco dias sem fornecer combustível, provocando desabastecimento e filas imensas nos postos do país. A crise se encerrou com o pagamento de 75 bitcoins, cerca de 4,7 milhões de dólares, aos bandidos on-line. Semanas depois, foi a vez de a subsidiária americana do gigante brasileiro das carnes JBS ter a base de dados invadida por criminosos cibernéticos russos e assistir à paralisação de várias fábricas. A situação só voltou ao normal com a transferência do equivalente a 11 milhões de dólares em bitcoins.
Cercadas de sombras, as criptomoedas são uma abstração cujo valor é garantido justamente pela popularidade e pelo entusiasmo que despertam. O bitcoin hoje é a mais famosa delas, em um espectro de mais de 5 000 similares, entre elas variedades que gozam de boa popularidade como ethereum, tether e binance coin. Em 2020, elas movimentaram 21 trilhões de dólares em todo o mundo, volume que marcou um crescimento de 50% em relação a 2019, segundo a consultoria TokenInsight Research, especializada no tema. “As moedas digitais trazem muitas utilidades que moedas tradicionais não têm e, quando comparadas com elas, frequentemente têm um desempenho melhor. Elas vieram para ficar. Essa é uma realidade para a qual os bancos centrais terão de estar preparados”, diz o sino-canadense Changpeng Zhao, CEO da Binance, a segunda maior plataforma do mundo voltada para esses ativos.
A evolução das criptomoedas é um fenômeno típico da expansão digital. Apesar de ainda não serem oficialmente reconhecidas — a única exceção é El Salvador, que a adotou o bitcoin como uma das moedas oficiais —, elas são negociadas com avidez pelo mercado, a ponto de terem cotação balizada por gigantes do setor como S&P e Bloomberg. Na última quarta-feira, 23, uma unidade de bitcoin era cotada em 34 000 dólares, contra 10 000 dólares em 1º de junho do ano passado. A ethereum valia 1 937 dólares, ante 246 dólares cravados no ano passado. Obviamente, com as cotações marcadas por grande volatilidade, as quedas costumam ser tão bruscas quanto as valorizações (confira no quadro). Ainda assim, entre julho de 2019 e julho de 2020, a compra e venda de criptomoedas no Brasil movimentaram 100 bilhões de reais, segundo dados da Receita Federal. “É um movimento forte e não sabemos onde vai parar”, diz Felipe Miranda, cofundador da casa de análises de investimentos Empiricus, recentemente comprada pelo banco BTG. “Provavelmente assistiremos a um choque de regulamentação em escala global. Mas é um desafio fazer isso sem destruir o principal atrativo desse tipo de investimento.” A Empiricus tem parte de seu caixa aplicada em criptomoedas e seu controlador, o BTG, lançou neste ano dois fundos com ativos em bitcoins.
Assim como acontece com apostas ousadas na bolsa de valores ou aplicações financeiras de altíssimo risco, o que atrai os investidores de criptomoedas é a perspectiva de ganhar muito dinheiro — e de forma simples e rápida. O empresário Daniel Medeiros, de 40 anos, é um desses apostadores das finanças digitais. Sua primeira experiência na área aconteceu em 2017, quando comprou 200 dólares em dogecoin, uma criptomoeda criada em 2013 nos Estados Unidos pelos programadores Billy Markus e Jackson Palmer como alternativa de apelo pop ao bitcoin. Na ocasião, o dogecoin era quase uma brincadeira que tinha como símbolo uma moeda com a estampa de um cão da raça shiba inu. Com o passar do tempo, Medeiros esqueceu a aplicação e só recentemente foi conferir a cotação, quando acabou deparando com o equivalente a 8 000 dólares em dogecoins em sua carteira digital. Tal sucesso, além de estimular novas aplicações, o levou a se associar a um projeto em fase inicial que tenta repetir por aqui o sucesso da congênere americana. “É um mercado muito diferente de um investimento de renda fixa, por exemplo. É preciso estar preparado para altos ganhos e grandes perdas”, avalia.
Os ativos digitais atualmente disponíveis no mercado se enquadram nos mais diferentes tipos e protocolos, mas possuem em comum a operação em sistema de blockchain. Trata-se de uma rede que funciona em cadeia como um sistema autogerido pelos próprios detentores da moeda. A confiança do sistema é garantida pela teoria dos jogos: os usuários têm interesse em mantê-lo estável e confiável para preservar seus investimentos. É comum, inclusive, os próprios usuários apontarem irregularidades na operação, e são incentivados a fazer isso. Quando alguém descobre uma transação irregular, recebe uma quantia da criptomoeda como recompensa.
Entretanto, da mesma forma que todo esse arcabouço impede fraudes sistêmicas, algumas características dos ativos digitais os tornam especialmente propensos a quem deseja viver de golpes no mundo real. A mais importante é o anonimato nas operações, uma vez que não exige identificação pessoal. Esse anonimato, além de facilitar a movimentação de valores e transações internacionais de forma sigilosa e sem acompanhamento das autoridades, cria um ambiente propício para a prática de crimes, como lavagem de dinheiro.
A falta de fiscalização formal também abre brechas para uma prática conhecida como pump and dump (veja o quadro abaixo). Por serem altamente especulativas, as criptos têm suas cotações expostas a influências externas. O bilionário e criador da Tesla, Elon Musk, por exemplo, é um agitador contumaz do mercado de bitcoin e dogecoin com seus posicionamentos a favor ou contra as moedas publicados pelo Twitter para seus 57,4 milhões de seguidores. Tal conduta seria impensável se o foco fosse o mundo real das finanças, devido às normas dos órgãos reguladores. “Se fizesse comentários como esses em relação ao mercado financeiro tradicional, com certeza estaria preso”, diz Marco Castellari, CEO da plataforma Brasil Bitcoin, especializada em moedas digitais.
Uma forma de os governos conterem a influência das criptomoedas e assumirem o controle da situação é a adoção de moedas virtuais pelos bancos centrais, o que atenderia à crescente demanda dos meios de pagamentos eletrônicos. Em vez de terem sua cotação ligada à demanda descentralizada, como acontece com o bitcoin, essas moedas digitais soberanas seriam lastreadas na economia real das nações. A China deu um passo decisivo nesse sentido ao lançar sua própria divisa eletrônica, o e-yuan. E não está sozinha nesse processo. Uma pesquisa do Banco de Compensações Internacionais, que reúne as autoridades monetárias internacionais, mostra que, entre os bancos centrais associados (entre eles o do Brasil), 86% estudam o potencial dessas moedas, 60% testam tecnologias e 14% lançaram projetos-piloto. Obviamente, tais iniciativas não oferecem o apelo das criptomoedas e há duvidas sobre se serão tão atraentes aos investidores quanto suas concorrentes não regulamentadas. Em um mercado em plena ebulição, há muita gente que acredita que os ganhos compensam os riscos.
Publicado em VEJA de 30 de junho de 2021, edição nº 2744