A população brasileira odiava a CPMF. Instituído em 1993 com o nome de imposto provisório sobre movimentação financeira, e retomado quatro anos mais tarde já com o título que lhe deu fama, no qual a primeira palavra passou a ser “contribuição”, o tributo parecia ignorar o termo “provisória” — era seguidamente renovado. Até que, em 2007, a pressão popular conseguiu derrubá-lo, acabando com a cobrança de 0,38% sobre operações bancárias. Dilma Rousseff bem que tentou ressuscitar o “imposto do cheque”, mas a ideia foi rechaçada mesmo por seus aliados. Quando circulou a informação de que Paulo Guedes, ainda durante a campanha eleitoral, vinha conversando com empresários sobre a possibilidade de criar um tributo nos moldes da extinta CPMF, o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro foi, digamos, taxativo: tratava-se de fake news. “Votei pela revogação da CPMF na Câmara e nunca cogitei sua volta”, disse ele em setembro de 2018. Um ano depois, no entanto, o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, parece estar conseguindo minar a resistência do chefe. “Já falei para o Guedes: para ter nova CPMF, tem de ter uma compensação para as pessoas. Senão ele vai levar porrada até de mim”, declarou Bolsonaro na terça-feira 3, em um café da manhã no Palácio da Alvorada.
Entusiasta do imposto sobre pagamentos há décadas, Cintra prepara uma proposta de reforma tributária a ser apresentada nas próximas semanas, e acredita ter encontrado um modo de tornar o encargo palatável: atrelar a “nova CPMF” à criação de empregos — o que muda, ao menos em parte, a receptividade ao projeto. O Brasil, vale lembrar, conta hoje com 12,6 milhões de desempregados.
VEJA teve acesso a um documento do governo que detalha os planos da equipe econômica para o sistema tributário brasileiro. De acordo com o texto, que vem sendo apresentado a membros do Executivo, empresários e representantes de movimentos civis, o projeto prevê a substituição de seis impostos federais por três novos tributos — a ideia aqui é simplificar a cobrança e o pagamento das obrigações. O objetivo principal, porém, é outro: o governo quer reduzir drasticamente o conjunto de encargos que pesam sobre a folha salarial das empresas (caso da contribuição patronal ao INSS, por exemplo), sob o argumento de que a medida incentivará a contratação de novos funcionários — atacando, assim, o tormento do desemprego. Como o país vive uma gravíssima crise fiscal, a extinção ou redução de um imposto implica, necessariamente, a criação ou o aumento de outro. A saída, então, para compensar a perda de arrecadação seria o advento da contribuição social sobre pagamentos (CP) — uma reedição da CPMF, que incidiria sobre operações feitas no sistema bancário (como transferências, saques e pagamentos). “Entre um imposto horroroso, muito feio, e a opção por desoneração da folha, prefiro abraçar o feioso a ficar com a oneração da folha do jeito que é hoje”, afirmou o ministro da Economia, Paulo Guedes, em um encontro com empresários em agosto. “Se for pequenininho, (o tributo) não machuca.”
Caso o secretário Marcos Cintra consiga emplacar seu plano, a CP será instituída em até seis meses após sua aprovação, com alíquota de 0,19%, e subirá gradativamente em uma transição de dois anos, até atingir 0,67% sobre todas as operações bancárias, em contrapartida à paulatina extinção de encargos trabalhistas (veja o quadro). Embora possa ser positiva, sua adoção não será uma batalha fácil. Para os opositores da proposta, a nova CPMF geraria distorções no preço das mercadorias, provocaria a fuga do consumidor do sistema financeiro — ele usaria cada vez mais dinheiro vivo ou então criptomoedas, escapando assim da tributação — e complicaria a cadeia produtiva das companhias. “Nos moldes da economia moderna, as empresas se concentram em sua atividade principal e terceirizam o restante, o que resulta em ganho de eficiência e crescimento de renda e emprego. O imposto proposto as incentiva a tentar fazer o máximo possível por conta própria, para cortar um custo tributário sem sentido”, critica Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda.
A estratégia do governo para dar celeridade à aprovação de seu plano é pegar carona no projeto de reforma tributária apresentado pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP), que já passou pelos estágios iniciais dos trâmites na Câmara Federal. O problema é que a PEC 45/2019, nome oficial da proposta no Congresso, tem pontos que divergem bastante das ideias de Marcos Cintra. Além da oposição de Rossi à volta da CPMF, o projeto defendido pelos deputados busca extinguir o ICMS, que é estadual, e o ISS, imposto sobre serviços de responsabilidade dos municípios — e o Executivo quer se concentrar nos impostos federais.
A proposta de Rossi tem o aval do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e da maioria dos deputados, que temem o ônus político de restabelecer um tributo impopular como a extinta CPMF. Todavia, cresce entre parte do empresariado o apoio ao projeto do governo, com reclamações contra certas propostas da reforma de Rossi, especialmente no que diz respeito ao setor de serviços — como escolas e hotéis —, que teria uma incidência tributária mais alta para compensar o corte de encargos em vários segmentos da indústria provocado pela criação do imposto único. “A PEC 45 aumenta a alíquota sobre o nosso setor, o que prejudica a economia como um todo e fomenta a informalidade”, afirma Luigi Nese, presidente da Confederação Nacional de Serviços. Em um almoço na capital paulista organizado pelo Instituto Brasil 200, formado por empresários, o presidente nacional do PSL, Luciano Bivar, prometeu encampar no texto de Rossi pontos defendidos pelo grupo — entre eles a nova CPMF. “O imposto sobre pagamentos é uma forma moderna de financiar o Estado, de arrecadar sobre todo o PIB com menor índice de sonegação”, acredita Gabriel Kanner, presidente do instituto. A missão agora é convencer a população brasileira.
Publicado em VEJA de 11 de setembro de 2019, edição nº 2651