Em meio a uma das mais graves crises econômicas da história do país, o Banco Central (BC) está diante de uma encruzilhada. De um lado, o BC precisa manter a Selic em patamares baixos para incentivar a economia: hoje em 2,25%, a taxa de juros básica pode cair ainda mais até o final do ano, conforme o mais recente comunicado do Comitê de Política Monetária (Copom). O mesmo movimento de queda de juros vem sendo feito ao redor do mundo para melhorar a tomada de crédito e ele não seria nocivo ao Brasil não fosse por um detalhe importante: as taxas de juros longas no país estão muito altas e distantes da taxa Selic. A taxa do contrato de Depósito Interfinanceiro, também conhecida como DI, fechou na terça-feira 14 em 5,59% para vencimento em janeiro 2025. Isso acontece porque o risco do Brasil está muito alto. A dívida pública em junho já passa de 80% do PIB e, para alocar recursos no país, os investidores cobram um retorno mais alto.
Como se já não bastassem as atuais dificuldades para fechar a conta fiscal, um novo escoamento está ocorrendo nos já minguados cofres do Tesouro Direto: diante do alto risco do Brasil, os investidores estão perdendo o interesse em investir a longo prazo e comprando mais títulos públicos de vencimento curto, o que significa mais contas para pagar em um prazo máximo de dois meses. “Isso dificulta o gerenciamento da dívida pelo Tesouro porque ele precisa estar sempre financiando uma parcela elevada, ficando, portanto, sujeito às condições voláteis do mercado. O normal é buscar um alongamento da dívida, o que fornece margem para planejar melhor as rolagens e fugir de momentos muito turbulentos”, diz Silvio Campos Neto, sócio e economista da Tendências. Por outro lado, emitir títulos a longo prazo foi uma opção do Tesouro no primeiro semestre, caso contrário ele teria de estender a dívida e se comprometer a pagar maiores juros aos investidores. Essa é uma confluência perigosa, especialmente se tratando de um país com uma situação fiscal tão delicada.
Em abril o saldo desses fundos foi negativo em 58,2 bilhões de reais e em maio em 11,7 bilhões. Em junho o saldo foi positivo, mas uma das modalidades da renda fixa teve captação líquida negativa em 4,79 bilhões. “Existe sim um desafio na gestão da dívida relacionada a uma Selic que está historicamente muito baixa”, diz Ana Paula Vescovi, ex-secretária do Tesouro Nacional e economista-chefe do Santander Brasil. “O Brasil tem algum tempo para administrar essa difícil equação que diz respeito à política monetária e à situação da dívida pública, mas não é todo o tempo do mundo”, diz ela. Acompanhando os comunicados do Copom, a expectativa do Santander é de que a Selic ficará em 2,25% até o final de 2021 e deve voltar a subir apenas no primeiro semestre de 2022.
Assim como o Santander, a leitura majoritária do mercado é que a taxa comece a ser elevada pelo Banco Central de forma gradativa. O entendimento é de que a necessidade de financiamento da dívida deve aumentar significativamente no ano que vem e que, a partir da devassa causada pela pandemia da Covid-19 às contas públicas, as taxas baixas não serão condizentes com o cenário fiscal do país. “O Brasil já partia de um cenário fiscal delicado e o coronavírus tornou o cenário ainda mais preocupante. A necessidade de financiamento do Tesouro vai aumentar. Pode não ser um problema nos próximos meses, mas nos próximos anos”, diz Sérgio Goldenstein, ex-diretor de Mercado Aberto do BC.
O Itaú Unibanco, por sua vez, acredita que a Selic deverá se manter em 2,25% até o final desse ano e subirá para 3% no final do ano que vem. “Não é saudável ter taxas de juros longas mais altas porque prejudica os investimentos. Daí vem a relevância de se fazer reformas”, diz Fernando Gonçalves, Superintendente de Pesquisa Econômica do Itaú Unibanco. Já a XP Investimentos acredita que na próxima reunião de agosto do Copom ocorrerá um corte residual da Selic, para 2%, e que o índice deve permanecer baixo até o final do ano que vem. “Tem gente apostando que a Selic ficará em 1,75%, porque a inflação está baixa. Acredito que o BC vai adotar um regime de cautela por causa da questão fiscal”, diz Vitor Vidal, economista da XP Investimentos.
Diante da impossibilidade do Banco Central controlar a curva de juros longa brasileira, definida pelo mercado, a instituição aprovou no final de junho a sua compra de títulos privados. A instituição afirmou que a medida foi feita apenas para financiar pequenas e médias empresas durante a pandemia, mas isso também pode ter sido feito como instrumento monetário para achatar a curva longa. Apesar de aprovada, a medida ainda não foi utilizada. “É quebrar o termômetro dos riscos que estão no ambiente econômico”, analisa Ana Paula Vescovi. “É uma maneira dele manipular essa situação, mas no fim das contas não resolve porque o problema está na situação fiscal”, diz Victor Beyruti, analista da Guide Investimentos. “Por outro lado, é um instrumento que pode ser bom, porque é uma forma de regulamentar o mercado”, disse ele.
ASSINE VEJA
Clique e AssineParalelamente, a soma da frágil situação fiscal do país com a baixa taxa de juros afugenta investidores internacionais, o que diminui a reserva de dólares no país e aumenta os preços da moeda americana em relação ao real. Para tentar amenizar a situação, o Banco Central tem feito leilões para aumentar a quantidade de dólares no país, mas sozinhos eles não são suficientes para baixar a cotação do dólar. “O Banco Central tem que se preocupar tanto com a questão fiscal, como externa. O governo tem que fazer tudo que pode para controlar os gastos públicos, definir metas, como estava fazendo antes. Se os juros estiverem muito baixos, e o país perder confiança externa, os investidores tiram dólares do país, como já aconteceu várias vezes, o que vai pressionar o câmbio. Pode provocar o aumento dos preços aqui dentro”, diz Carlos Thadeu de Freitas Gomes, ex-diretor da instituição.
Nesse dilema, o Bacen tem poucos caminhos a seguir. Um deles é torcer pela aprovação das reformas fiscais que diminuirão o risco do país, o que atrairá mais investidores dispostos a investir a longo prazo. O outro é subir a taxa Selic. Apesar de parte do mercado estar otimista com a agenda de Paulo Guedes, as reformas estão paralisadas porque o Congresso priorizou a gestão da crise do novo coronavírus. Na terça-feira 14, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, afirmou que colocará o texto da reforma tributária para votação hoje, mesmo sem o retorno das comissões mistas, alegando que a “unificação dos impostos é urgente”. A ação de Maia foi um alento em meio a uma conta fiscal que não fecha.
Momentos de crise exigem estratégias bem articuladas. Com a economia mundial assolada pela Segunda Guerra Mundial, 45 líderes de nações se encontraram em New Hampshire, na cidade de Bretton Woods, para alinhar os ponteiros quanto à política monetária mundial depois do descalabro e da fome colhidos como consequência das trincheiras. A série de encontros em 1944 definiu o dólar como moeda que lastrearia as oscilações do câmbio ao redor do mundo e as diretrizes de uma nova política monetária. Na ressaca das bombas e dos famigerados anos 1930, a articulação era necessária e cada movimento, executado com precisão. Com o país ferido pela Covid-19, a economia brasileira espera que a instituição-chefe da política monetária tome a frente para definir os próximos passos. Se tratam de escolhas difíceis – e que não são tomadas sem consequências. Resta torcer para que elas caminhem e o Brasil volte enfim a ter uma situação fiscal confiável que atraia investidores e possibilite o seu crescimento. As grandes decisões da história não são tomadas sem consequências, mas são elas que garantem o futuro das nações.