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Lula mira Campos Neto e o BC em estratégia de alto risco para o Brasil

O presidente escolhe o Banco Central e seu presidente como alvos de uma artilharia despropositada que pode ter resultados desastrosos para o próprio governo

Por Carlos Valim, Felipe Mendes, Luana Zanobia, Victor Irajá Atualizado em 4 jun 2024, 10h45 - Publicado em 10 fev 2023, 06h00
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  • Em meio ao frenesi eleitoral que se instalou no Brasil no segundo semestre do ano passado, o Banco Central transformou-se em um exemplo de estoicismo. A máquina pública rodava com um único objetivo, o de garantir a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. O Congresso havia aprovado uma PEC permitindo ao governo usar recursos acima do teto de gastos para aumentar o valor do benefício social aos mais pobres e conceder auxílio a caminhoneiros e taxistas. Os impostos federais e até mesmo os estaduais para combustíveis foram cortados. A Petrobras passou a baixar preços para as refinarias. Em meio a tudo isso, o BC promoveu um aumento da taxa Selic para 13,75% com o objetivo de manter a inflação sob controle, mesmo na contramão das medidas tomadas pela máquina bolsonarista. Foi uma mostra inequívoca de independência e da priorização de critérios técnicos. Chefe da autarquia, Roberto Campos Neto, se tornou o primeiro presidente do BC autônomo, mudança aprovada pelo Congresso e sancionada por Bolsonaro em 2021, depois de mais de duas décadas de sua proposição. Antes do aumento nos juros acontecer, Campos Neto sinalizou à alta cúpula governista a decisão. O presidente não se manifestou, mas representantes do governo, tanto da ala política quanto da econômica, fizeram pressão.

    Lula -
    DIA DE FÚRIA - Lula, no BNDES: agressividade e negacionismo – (Mauro Pimentel/AFP)

    Desde então, a Selic atravessou a troca presidencial no mesmo patamar. Era esperado que as reclamações quanto aos juros altos seguiriam na nova gestão. Mas a virulência dos ataques surpreendeu e escalou de forma inaudita nos dias seguintes à primeira reunião de definição de juros empreendida pelo BC, no início de fevereiro. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não gostou dos termos do comunicado da instituição que justificava a manutenção da alta dos juros, subiu o tom e passou a alvejar o BC quase diariamente em seguidas declarações. Primeiramente, Lula reclamou da meta de inflação baixa que estimulava juros altos, e ainda alegou que poderia rever a autonomia do órgão a partir 2025, logo depois do fim do mandado do “cidadão” que o comandava. Depois, chamou de “vergonha” o patamar dos juros. Ato contínuo, pediu uma vigilância da situação pelo Senado, pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e pela ministra do Planejamento, Simone Tebet. Em meio aos ataques, Haddad tentou contemporizar publicamente o destempero presidencial, declarando que a ata da reunião do BC, divulgada depois do documento que atraiu a fúria do mandatário, havia sido mais “amigável”.

    MARCO - Aprovação da autonomia do BC: um dos maiores avanços do país no campo econômico nos últimos anos -
    MARCO - Aprovação da autonomia do BC: um dos maiores avanços do país no campo econômico nos últimos anos – (Jefferson Rudy/Agência Senado)

    Mas a sinalização agressiva serviu para atiçar a militância governista — curiosamente, uma estratégia similar à do ex-presidente Jair Bolsonaro. O deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) publicou em suas redes sociais: “O Brasil tem a maior taxa de juro real DO MUNDO. Quem ganha com isso?”. Gleisi Hoffmann, presidente do PT e uma das vozes que vêm influenciando Lula na direção errada, criticou: “Ter mandato não significa não ter responsabilidade com um país que precisa crescer urgente”. O PSOL apresentou um projeto de lei para retirar a autonomia do BC. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) levou a discussão a um terreno mais exótico, ao apresentar um ranking comparando a taxa de juros de 13,75% e inflação em 6,47% do Brasil com a Turquia, de juros de 9% e inflação de 84,39%, como forma de argumentar que taxas altas não controlam a inflação. Ele provavelmente não percebeu que o exemplo turco reflete justamente o desastre de um banco central controlado por um governante de poucos escrúpulos. Em março de 2021, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, demitiu o presidente da instituição, que havia levado as taxas a 19% — o terceiro afastado em dois anos. A substituição causou menos juros e muito mais inflação.

    ESTÁVEL - Protestos no Peru: economia preservada em meio ao caos político -
    ESTÁVEL - Protestos no Peru: economia preservada em meio ao caos político – (Lucas Aguayo/AFP)

    Ainda há esperanças de que Lula reduza o disparo de impropérios contra Campos Neto e recue do negacionismo econômico que encampou nos últimos dias (leia a Carta ao Leitor, na pág. 7). Acompanhando o presidente em viagem aos Estados Unidos, a partir da quinta-feira 9, Haddad deve tentar sensibilizar o presidente para os riscos de tal tumulto. Em sua preleção poderia usar, por exemplo, o fato do tema da autonomia dos BCs já ter sido pacificada em outros países da América Latina — inclusive os socialistas. O Peru, hoje enrolado em uma crise política e institucional, cresce de forma consistente há cerca de três décadas, tendo multiplicado o seu PIB em seis vezes no período. O presidente do BC local, Julio Velarde, está no posto desde 2006 e a estabilidade atravessou governos de direita e de esquerda, impeachments, golpes e até o suicídio de um ex-presidente, graças à blindagem da economia. No Chile, o presidente esquerdista Gabriel Boric escolheu o presidente do BC do governo anterior como o seu ministro da Fazenda. “Existe uma ampla literatura acadêmica desde os anos 1990 apoiando a independência e autonomia dos bancos centrais. É amplamente aceito entre os economistas que a independência dos BCs os protege de pressões políticas, especialmente no fim dos mandatos”, defende o ex-diretor do BC Tony Volpon. “É comum que políticos critiquem os presidentes dos BCs. Se a crítica permanecer no nível verbal, o mercado se acostumará, mas, se passar para ação, podem ocorrer problemas”. No caso brasileiro, o mercado acompanha com atenção um movimento que indicará as intenções do governo. No próximo mês está prevista a troca de dois diretores da instituição. Se Lula forçar a escolha por nomes mais alinhados a ideias que defendem juros artificialmente baixos será um péssimo sinal.

    A obsessão do presidente com os juros altos chama particularmente a atenção, uma vez que o atual ocupante do Palácio do Planalto adotou em sua primeira Presidência, iniciada em 2003, uma postura bem mais comedida com relação às taxas estabelecidas pela instituição — naquele tempo a taxa era o dobro da atual. Na época, as críticas contra o chefe do BC, Henrique Meirelles, vinham apenas do vice-presidente José Alencar e de políticos do PT na forma de chumbo grosso. Hoje, além de Gleisi Hoffmann, o bunker anti-BC conta com a participação direta de Aloizio Mercadante, presidente do BNDES, que montou uma espécie de Ministério da Fazenda paralelo e gostaria de ver André Lara Resende no cargo (leia o Radar, na pág. 20). Exagerada e fora do tom, a explicação de tanta animosidade contra Campos Neto pode estar no fato de ele ser visto pela esquerda mais radical como um representante do inimigo. É citado com frequência o fato de ele ter sido flagrado, em janeiro, como um participante de um grupo de WhatsApp de ministros de Bolsonaro. A pessoas próximas, Campos Neto diz que havia muito tempo não fazia comentários nesse grupo, a não ser banalidades como “Feliz Natal” e “Parabéns”.

    A ORIGEM - Campos Neto, Bolsonaro e Paulo Guedes: nomeação pelo governo anterior alimenta intrigas dos radicais -
    A ORIGEM - Campos Neto, Bolsonaro e Paulo Guedes: nomeação pelo governo anterior alimenta intrigas dos radicais – (Alan Santos/PR)

    Mesmo na linha de tiro, o presidente do BC não vai abandonar a trincheira e tem indicado que, assim como suportou a pressão de bolsonaristas que chegaram a recomendar que deixasse o cargo após a vitória de Lula, ele pretende resistir à ofensiva do novo governo. Por justamente ser o primeiro presidente do BC autônomo, ele se sente incumbido da missão de estabelecer um precedente positivo para o país — tarefa que está cumprindo com galhardia. Em privado, antecessores seus no cargo, da estirpe de Henrique Meirelles e Armínio Fraga, têm telefonado e mandado mensagens de apoio a sua resiliência, além de terem defendido publicamente seu posicionamento.

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    BUNKER ANTI-BC - Aloizio Mercadante e Gleisi Hoffmann: ataques contra Campos Neto e a autonomia da autarquia partem principalmente da dupla -
    BUNKER ANTI-BC - Aloizio Mercadante e Gleisi Hoffmann: ataques contra Campos Neto e a autonomia da autarquia partem principalmente da dupla – (Andressa Anholete/Bloomberg/Getty Images)

    A questão é que a saraivada de balas de Lula contra o BC já se transformou em um tiro no próprio pé do presidente. A polêmica despropositada e fora de hora tem resultado exatamente naquilo que nem o governo, nem a sociedade, querem: uma expectativa maior de inflação e de taxas de juros altas por mais tempo. E justamente em um momento que se mostrava positivo para o Brasil. Nos últimos meses, os investidores internacionais passaram a ver os países emergentes com mais otimismo, por conta de circunstâncias que envolvem a economia dos Estados Unidos. A mudança de governo também foi bem recebida, por trazer um discurso mais responsável com o meio ambiente e mais afeito à estabilidade democrática. Nesse contexto, em janeiro, o Ibovespa subiu 3,37% e o dólar caiu 3,85%, abaixo da faixa de 5 reais. Com a ofensiva contra o BC, o dólar passou a rondar os 5,20 reais, e em duas semanas a projeção do mercado para o IPCA deste ano subiu de 5,48% para 5,78%. “As falas de Lula geram um ciclo que se retroalimenta, porque aumenta a pressão para que o BC aja com juros mais altos, a economia desacelera, e isso vai contra o objetivo do governo, que volta a criticar o BC”, comenta Fabio Kanczuk, chefe de macroeconomia da Asa Investments e ex-diretor do BC.

    Mesmo para críticos do BC autônomo, a polêmica engendrada pelo presidente da República parece contraproducente. Mudanças de fato na autonomia do Banco, aprovada pelo Congresso e referendada pelo Supremo Tribunal Federal, ou ações para expulsar Campos Neto do comando da instituição consumiriam elevado capital político do governo, coisa que Lula não pode se dar ao luxo de desperdiçar. Afinal, o governo se prepara para enfrentar batalhas como a aprovação de uma reforma tributária e um novo arcabouço fiscal para substituir o teto de gastos. Ainda que tais argumentos não sejam suficientes, basta lembrar as consequências da última vez que o Palácio do Planalto influenciou a política de juros do país. Na ocasião, as taxas mantidas artificialmente baixas durante a Presidência de Dilma Rousseff, sob a gestão de Alexandre Tombini no BC, ajudaram a gestar uma crise econômica cujos efeitos afetam o Brasil — e Lula — até hoje. O alvo, definitivamente, está errado.

    Publicado em VEJA de 15 de fevereiro de 2023, edição nº 2828

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