A indústria de alimentos Sadia protagonizou há doze anos o que hoje é um dos principais casos de estudo de gestão de empresas do país: de gigante e líder do mercado, foi à lona em um único lance, a partir de um malsucedido investimento em derivativos de dólar. A aposta errada levou a empresa a queimar seu caixa e partir para um processo de fusão com a principal concorrente, a Perdigão. Com a ajuda do governo, nascia a BRF, pronta para ser uma líder global na produção de proteína animal. A história se faz pelos vencedores e, como perdedores, os membros das famílias fundadoras da Sadia foram afastados da linha de comando, à exceção de Luiz Fernando Furlan, ex-ministro do governo Lula. Com o expurgo, os herdeiros de Atílio Fontana, o mítico criador de porcos de Concórdia (SC) que construiu um colosso, foram banidos da companhia. Desde então eles tentam voltar ao comando. Em 2018 quase conseguiram, ao depor Abílio Diniz da presidência do Conselho da BRF. Acreditavam que Pedro Parente, recém-saído da Petrobras, os apoiaria. Erraram. E, com isso, Parente se tornou um novo alvo.
Nas duas últimas semanas, VEJA conversou com membros do Conselho, ex-conselheiros, executivos e acionistas da companhia, além dos herdeiros. O movimento para destituir Parente não é segredo nos bastidores da empresa. Porém é uma articulação extremamente complexa, pois o que no passado era uma grande empresa nas mãos de duas famílias, hoje é uma corporação gigantesca com mais de 1 000 acionistas, em que os dois principais são os fundos Petros e Previ, ligados à Petrobras e ao Banco do Brasil. Entre os demais, nenhum alcança 5% de participação — a Kapitalo, o maior deles, tem 4%. Mesmo assim, os herdeiros dos Fontana tentam a todo custo costurar uma aliança entre os demais herdeiros dos fundadores, o que incluiria Furlan. O grupo composto de Walter Fontana e Alfredo Felipe da Luz Sobrinho, neto de criação de Atílio, acredita ter mais de 5%, caso Furlan integre a composição, formando o mínimo necessário para convocar uma Assembleia-Geral Extraordinária com o propósito de destituir Parente. Segundo uma fonte da companhia, o volume não chegaria a 1,5%. Segundo o ex-ministro, “a BRF vem trilhando, nos últimos dois anos, o caminho do crescimento e o fortalecimento da cultura organizacional. A atual administração conta com todo o nosso apoio”.
O pretexto para a ofensiva dos Fontana está posto à mesa: a ascensão da arquirrival JBS. Há pouco mais de dez anos, a BRF estava isolada na dianteira, mas acabou ultrapassada e hoje olha de longe a concorrente. A JBS, a despeito do extenso histórico de escândalos, fatura seis vezes mais que a BRF, obteve um lucro líquido contábil vinte vezes maior em 2019, e vale o triplo. Para os herdeiros, isso só aconteceu por causa da inaptidão de gestores como Abilio Diniz (que detém 1,8% do capital) e Pedro Parente. “A performance da BRF tem sido inferior por dois motivos: cerca de metade do resultado da empresa vem do mercado brasileiro, que pode ser mais impactado pela desaceleração econômica, ao passo que Marfrig e JBS têm cerca de três quartos dos seus resultados vindos dos Estados Unidos”, diz Betina Roxo, analista da XP Investimentos. “Há, também, uma preocupação maior quanto ao endividamento da BRF, ainda que se encontre em patamares saudáveis.” Apesar de a margem operacional bruta ter dobrado de dois anos para cá e o endividamento melhorado, os herdeiros de Fontana querem mais. A companhia afirma que “vem alcançando resultados consistentes, em linha com a estratégia de longo prazo da atual gestão, focada no crescimento sustentável e na rentabilidade, guiada pelos nossos compromissos com os critérios ambientais, sociais e de governança, sendo a única empresa do setor de alimentos a compor o Índice de Sustentabilidade da B3”.
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Clique e AssineReuniões aconteceram ao longo das últimas duas semanas para articular o apoio às pretensões do grupo. Contudo, a aproximação da divulgação do balanço da BRF, marcada para 13 de agosto, colocou a mobilização em compasso de espera. Os Fontana decidiram aguardar os resultados porque acreditam que, caso os números venham negativos, a articulação contra Parente ganha mais força. VEJA apurou que, apesar de a pandemia diminuir o volume de exportações da BRF, a alta do dólar equilibrou as perdas. Entre abril e junho, embarques de carne de aves para o Oriente Médio — o principal mercado internacional da BRF — a partir das unidades de Santa Catarina e Paraná caíram mais de 30% em relação ao mesmo período do ano passado. Para o resto da Ásia, o tombo foi de 10%. Já as vendas de carne suína mais do que dobraram para o mercado asiático, porém a receita obtida com esses produtos não chega à metade da proveniente com as vendas de carne de aves. “Desde o começo da pandemia houve uma diminuição na produção de carne de frango e, com isso, as exportações acabaram diminuindo. O preço da tonelada caiu, mas, contabilizados os valores em dólares, a situação ficou um pouco melhor do que antes”, afirma Alcides Torres, da consultoria Scot.
Em uma grande corporação, há poucos pontos de pressão disponíveis para se destituir um Conselho inteiro — mesmo porque, no caso da BRF, a eleição foi consumada há pouco mais de três meses, com 86% de aprovação, com 14% de abstenções. Contudo, os Fontana acreditam ter encontrado o que necessitavam para angariar apoio em bloco entre acionistas. Eles argumentam que o Conselho recebe remunerações excessivas e incompatíveis com a situação da companhia. Em 2020 serão distribuídos 24 milhões de reais a dez conselheiros e Parente receberá 7 milhões de reais em remuneração fixa, além de bônus por funções executivas. Para ressaltar a discrepância, eles se valem da comparação com a JBS, que pagará 5 milhões de reais a todos os nove conselheiros. Outro argumento são os gastos publicitários. Para este ano, a empresa renovou o contrato para patrocinar o futebol da Rede Globo e contratou o apresentador Luciano Huck como garoto-propaganda, num pacote de cerca de 350 milhões de reais. Um dos herdeiros com trânsito político logo fez a informação chegar ao presidente Jair Bolsonaro, inimigo declarado da emissora. Segundo fonte do Palácio do Planalto, a notícia levou o presidente a se abster de influenciar os fundos de pensão em favor da atual gestão. Caso consigam atrair Previ e Petros e dois fundos de investimentos, Kapitalo e Aberdeen, para sua causa, os herdeiros vão reunir quase 32% dos votos. Eles calculam que com isso derrubariam Parente, da mesma forma que aconteceu com Diniz, há dois anos. Animados com a perspectiva de vitória, prometem ir a fundo em mais essa disputa pelo poder na companhia.
Publicado em VEJA de 12 de agosto de 2020, edição nº 2699