Homens tatuados, barbas grisalhas ao vento, jaquetas de couro e o inconfundível ronco dos motores a combustão. Essa é a imagem associada à Harley-Davidson, marca com 118 anos de história e um ícone americano. Criada em um barracão de Milwaukee pelos irmãos Arthur e Walter Davidson e pelo sócio William S. Harley, jovens ambiciosos na casa dos 20 anos, a empresa rapidamente se consolidou como a maior produtora de motocicletas do mundo. No início, destacou-se no mercado bélico, fornecendo os veículos às Forças Armadas dos Estados Unidos nas Guerras Mundiais. Depois, com garotos-propaganda e entusiastas como o músico Elvis Presley e o presidente Ronald Reagan, firmou-se como símbolo de rebeldia. Ser harleyro é um estilo de vida, como costuma definir sua legião de fãs. No entanto, para que uma tradição se perpetue, é necessário se adaptar ao espírito do tempo. No caso da Harley, o caminho passa por uma quebra de paradigma: tornar-se uma marca mais jovem e sustentável.
A empresa enfrentava quedas bruscas nas vendas quando anunciou, em 2014, a criação do LiveWire, projeto de desenvolvimento de motos elétricas. Anos depois, os primeiros modelos chegaram às concessionárias americanas, já com um ajuste sonoro estratégico: um ronco de motor artificial, mais baixo e semelhante a uma turbina de avião. Não é nada comparado à sinfonia dos clássicos pistões V2, mas suficiente para preservar alguma aura de aventura. O visual esportivo e a ausência de embreagem e de marchas, ideais para iniciantes, deixam clara a mudança de público-alvo. “Não é uma moto para o harleyro de raiz, entre 50 e 70 anos, mas para um público mais novo, ligado em inovação e ao meio ambiente”, diz Luiz Affonso Vasconcellos, diretor das lojas Harley no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte.
No início do mês, a empresa anunciou que o LiveWire terá uma gestão autônoma, seguindo o exemplo da Series 1, braço de bicicletas elétricas da Harley, e que produzirá novos modelos a partir de julho. O plano é liderar o mercado elétrico sobre duas rodas até 2025. “A ideia é que o avô tenha uma Harley clássica, o filho uma elétrica e o neto uma bike”, brinca o executivo
A proposta esbarra em um aspecto fundamental: preço. Por 29 800 dólares, a novidade custa pouco menos que um carro elétrico Tesla Model 3 e cerca de 30% a mais que os modelos top de linha da Zero Motorcycles, a pioneira em motos elétricas nos EUA. A expectativa era que as Harleys ecológicas chegassem ao Brasil no início de 2021, mas o câmbio desfavorável adiou os planos em pelo menos um ano. A empresa acredita que 120 000 reais seria o valor ideal para o produto. Por ora, não há como oferecê-lo por menos de 170 000 reais.
O rejuvenescimento da marca é a base de um plano de reestruturação anunciado em fevereiro pelo CEO alemão Jochen Zeitz, que também é ativista ambiental, colecionador de arte africana e autor de um guia sobre capitalismo sustentável. Zeitz foi contratado após realizar com sucesso um trabalho semelhante na Puma, que passou de fornecedora de material esportivo decadente a grife de moda moderninha.
Na Harley, Zeitz segue receita similar. Cortou 14% da força de trabalho, reduziu a produção pela metade e priorizou os modelos com maior margem de lucro. No Brasil, a moto mais barata, a Fat Bob, custa 98 000 reais, o dobro da tradicional linha Sportster, que foi descontinuada. A meta é consolidar a Harley como uma marca sintonizada com os novos tempos. Ser sustentável é um caminho sem volta, mas tem seu preço.
Publicado em VEJA de 26 de maio de 2021, edição nº 2739