Com mais de 2 bilhões de usuários ativos, o WhatsApp briga em pé de igualdade com o Facebook, empresa que o controla, pelo posto de rede social que vai ditar os novos rumos tecnológicos no mundo digital. No Brasil, estima-se que mais de 130 milhões de pessoas tenham o aplicativo instalado em seus celulares – 98% do montante é formado por usuários fiéis, que não passam um dia sequer sem acessar o mensageiro virtual. Mesmo os escândalos recentes de vazamento de dados ou a utilização do app para disseminação de notícias falsas – as Fake News –, que o colocou na mira do Supremo Tribunal Federal (STF), não foram suficientes para abalar de forma irrecuperável a reputação do sistema. Para mitigar futuros abalos sísmicos e garantir a rentabilidade do aplicativo, o Facebook decidiu buscar um comandante para o WhatsApp no Brasil, o que dá indícios sobre o futuro do aplicativo no país. Quem assumir a divisão local, instalada próximo à Avenida Faria Lima, em São Paulo, terá como missão declarada “construir e executar uma estratégia que expanda o uso e o faturamento no Brasil”. No entanto, as funções irão muito além disso. Fora dos Estados Unidos, somente a Índia, outro país onde o WhatsApp acumula polêmicas, possui um líder de operações local para o serviço de mensagens. O Brasil será, portanto, a segunda nação a adquirir tamanha relevância para seus negócios. Nada é à toa.
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Clique e AssineA pandemia de coronavírus tem acelerado o processo de digitalização do comércio. Com o varejo físico do país inteiro de portas fechadas para evitar a escalada do contágio pela enfermidade, o WhatsApp se tornou uma das principais formas de conversão em venda por parte das grandes empresas. A Via Varejo, dona de bandeiras como Casas Bahia e Ponto Frio, disponibilizou o aplicativo para mais de 7.000 funcionários e viu sua receita no e-commerce disparar. A plataforma virou uma ferramenta chave para pequenas, médias e grandes empresas. E esse é um dos motivos que explica o WhatsApp voltar suas atenções para o mercado brasileiro. Em fevereiro, o Facebook lançou a versão de testes do WhatsApp Pay, cuja função é permitir a transferência de dinheiro entre os usuários da rede de mensagens. Disponível para os sistemas Android e iPhone (iOS), o modelo é similar ao PicPay e está rodando a contento na Índia. Ao contratar um executivo para liderar a operação brasileira, testes como esse poderão ser aplicados primeiramente no país. Seria leviano, portanto, pensar que a movimentação da plataforma seja uma resposta somente aos casos de fake news. “A oportunidade de negócios e o potencial que existe para a ferramenta é o que deve estar justificando esse investimento no Brasil. Ninguém investe simplesmente com o objetivo de rechaçar boatos ou alguma questão pontual jurídica. Se o objetivo fosse puramente esse, eles estariam contratando um escritório de advocacia e não um head local”, diz Pietro Delai, gerente de programas para software e soluções na nuvem da consultoria global IDC.
Não dá para dizer, no entanto, que o anúncio da contratação de um executivo para liderar o desenvolvimento de soluções para o aplicativo no Brasil não seja uma tentativa de resposta aos casos de fake news. Dados do Digital News Report, estudo do Reuters Institute, publicado em junho de 2019, mostram que o brasileiro, mais do que nunca, é um “leitor de redes sociais”: 64% dos que têm acesso à internet se informam por meio delas. Mais da metade dos brasileiros usam o WhatsApp para obter notícias: 53%, empatado tecnicamente com o Facebook (54%). Com grande capilaridade de penetração nos lares do país, a rede também é alvo constante de oportunistas, que usam o fim para propalar informações mentirosas – mensagens, sobretudo, de cunho político. Processos distintos sobre o uso do mensageiro para o compartilhamento de notícias falsas tramitam no Supremo o no Tribunal Superior Eleitoral, o TSE. Nas últimas semanas, empresários como Luciano Hang, dono das lojas Havan; Edgar Corona, fundador das redes de academias Bio Ritmo e SmartFit; e Otavio Fakhoury, ex-sócio da Mauá Investimentos, foram alvos de mandados de busca e apreensão, suspeitos de financiar a disseminação de notícias falsas por meio do app para favorecer Jair Bolsonaro (sem partido) enquanto ainda era postulante à Presidência da República. “Por mais que as redes sociais não sejam as provedoras da informação, somente da infraestrutura, elas estão sendo cobradas de forma mais intensa por uma resposta. Não dá para dizer que a divulgação de fake news gere lucro para elas, mas é relevante ter uma estrutura capaz de administrar isso”, afirma Delai.
Em 2018, Mark Zuckerberg, cofundador e CEO do Facebook, foi intimado pelo Senado dos Estados Unidos a prestar depoimento sobre o vazamento de dados de 87 milhões de pessoas pela consultoria política Cambridge Analytica, ligada à campanha de Donald Trump nas eleições americanas. Ele admitiu erros e afirmou que a empresa iria investir em medidas para proteger os dados de sua base de usuários. “Esse episódio claramente nos machucou e evidentemente tornou mais difícil para nós alcançar a nossa missão social. Nós teremos muito trabalho para reconstruir uma confiança”, admitiu Zuckerberg, em depoimento à época. O escândalo colocou em xeque a privacidade de usuários no mundo inteiro. Hoje, o executivo ainda é cobrado por não ter uma postura mais enérgica em relação à propagação de fake news. O Twitter, por exemplo, já excluiu diversas publicações de Donald Trump, causando a fúria do atual presidente americano. “Não acho que o Facebook ou as plataformas de internet, em geral, devam ser árbitros da verdade. Eu acho que é uma linha perigosa a seguir, em termos de decidir o que é verdade e o que não é”, afirmou Zuckerberg, em entrevista recente à rede de televisão CNBC. O Facebook, no entanto, já deletou uma publicação compartilhada pelo presidente Jair Bolsonaro em que “cientistas” alegavam ter encontrado a cura para o coronavírus. “Isso obviamente não é verdade e é por isso que a removemos”, disse à rádio britânica BBC. Cumprindo uma promessa feita por Zuckerberg, a rede social apresentou o Comitê de Supervisão, uma espécie de corte suprema, de STF, para atuar em casos polêmicos e com autoridade acima até mesmo dos acionistas. No “tribunal”, há um brasileiro, o advogado Ronaldo Lemos, especializado em direito digital e professor na Uerj. Todas as decisões serão levadas a público, e o Facebook deve responder a elas publicamente também. Um relatório vai ser divulgado anualmente, com transparência sobre as deliberações e o modo como a empresa está honrando o que o comitê determinou.
Nos Estados Unidos, a Nasdaq, o mercado de ações onde estão listadas as principais companhias de tecnologia do mundo, pouco sentiu os efeitos da pandemia. Enquanto outros indicadores registraram quedas acachapantes, a Nasdaq foi o primeiro a atingir “bull market“, termo utilizado para definir sucessivas valorizações que culminam num avanço acima de 20% sobre o pico mais baixo do período anterior. Desde 23 de março, a bolsa americana valorizou-se quase 50%. O aumento de concentração de mercado de empresas como Amazon, Apple, Facebook, Netflix e Nvidia explica a alta fascinante. Segundo Daniel Domeneghetti, especialista em práticas digitais no relacionamento com o cliente e CEO da E-Consulting, a pandemia tem acelerado a dinâmica do ‘the winner takes it all‘ – ‘o vencedor leva tudo’, em tradução livre. “Os maiores bilionários americanos aumentaram a fortuna nesses últimos meses em 565 bilhões de dólares. Enquanto isso, várias pequenas e médias empresas, inclusive startups, estão quebrando. É a coisa mais antidemocrática possível em volume de concentração de recursos”, diz ele. Números publicados pelo Institute for Policy Studies (IPS) em 4 de junho apontam que o patrimônio de Mark Zuckerberg aumentou em 30,1 bilhões de dólares desde 18 de março.
O Brasil é um mercado a ser explorado. Diferentemente de China e Rússia, que possuem também um vasto território e capacidade inexorável de expansão socioeconômica, há no país, sobretudo, abertura comercial com outros países. São fatores cruciais para a entrada massiva de gigantes americanas e chinesas nos últimos anos. A Amazon, por exemplo, por muitos anos estudou formas de como prosperar no país. Desde 2012, a principal varejista do mundo ganha terreno pouco a pouco no cenário local. Na visão de especialistas, o Facebook tinha que dar uma resposta à altura ou ficaria para trás da concorrência. “Com a pandemia, se acelerou um processo intenso de substituição de modelos transacionais por meio de pagamento, que culminará em algum momento com a substituição em parte do padrão vigente de moeda. E, portanto, você não pode estar fora do jogo num mercado como o do Brasil”, afirma Domeneghetti. “O movimento de curto prazo do WhatsApp é certamente ser usado para substituição de call center e última milha com o cliente, prestando serviços para empresas e consumidores”. A expansão do aplicativo como meio de negócios no país será mais uma mostra de que termos como 5G, blockchain e Bitcoin vieram para fazer parte do imaginário popular.