Em abril de 1952, o então deputado federal baiano Nelson Carneiro anteviu uma oposição ferrenha ao Projeto de Lei 1.804 que acabara de apresentar. “Não nos iludamos que sobre ele desabarão outras tempestades de incompreensão e maldades”, disse. O projeto dispensava as mulheres da autorização formal dos maridos para trabalhar — uma exigência do Código Civil de 1916, vigente na época. O texto demorou uma década para ser aprovado. O episódio ilustra a lentidão com que a igualdade de gênero avança no Brasil, à mercê “da ignorância, do reacionarismo e das convicções obsoletas”, como advertiu Carneiro há 72 anos. Nos últimos tempos, contudo, a presença feminina no mercado vem se ampliando com mais força, impulsionada por fatores que vão do aumento da escolaridade ao engajamento das empresas em projetos inclusivos — e o ano de 2024 mostra um novo salto.
Ao analisar dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, pesquisadoras da Fundação Getulio Vargas constataram que, no acumulado do ano até agosto, a contratação de mulheres cresceu 45% sobre o mesmo período de 2023, somando mais de 800 000. É um avanço quatro vezes mais veloz que o dos homens, cuja absorção aumentou 10%. A arrancada permitiu que elas ficassem com 46% do 1,7 milhão de vagas abertas. É pouco, quando se lembra que representam 52% da população, mas indica uma melhora sobre 2023, quando preencheram 40% dos novos postos. Um motivo é a retomada do setor de serviços, que ainda se recupera da pandemia de covid-19. “É um setor que emprega muitas mulheres”, diz Janaína Feijó, pesquisadora da FGV e uma das autoras da análise. “Mas é um movimento de curto prazo.”
Mesmo assim, o fenômeno contribuiu para que 2 milhões de mulheres retornassem ao trabalho. É o caso da paulistana Juliana Ramalho, 36 anos. Até 2021, ela e o marido administravam quatro lojas de calçados. Com os prejuízos decorrentes da pandemia, o casal vendeu o negócio e ela decidiu se dedicar às duas filhas pequenas. O sabático terminou em junho, quando foi contratada como secretária em uma consultoria: “Meu plano nunca foi parar de trabalhar”.
Outro dado sugere uma mudança mais estrutural no mercado de trabalho. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informa que, no segundo trimestre, 48% das mulheres com 14 anos ou mais estavam trabalhando. Embora seja inferior aos 68% de homens na mesma situação, trata-se do maior percentual já registrado. Uma razão para o recorde é a mudança de expectativas. “As mulheres estão mais atuantes e buscam ter a própria renda”, diz Sonia de Almeida, diretora da Afesu, ONG que fornece cursos de reforço escolar e capacitação profissional para 1 300 mulheres com idades de 7 a 25 anos. Outro motivo para a disparada é o engajamento das empresas na promoção da igualdade entre os sexos.
Em maio, o governo federal lançou a sétima edição do Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça, que contou com a adesão de 103 companhias. Até 2026, os participantes devem reduzir a disparidade salarial e de oportunidades. É o caso da fabricante de automóveis Stellantis, que reúne marcas como Fiat, Peugeot e Jeep. As mulheres são 25% dos 25 000 funcionários do grupo no país, ante 21% no ano passado. “Temos um compromisso ambicioso com a igualdade de gênero”, diz Massimo Cavallo, vice-presidente de recursos humanos. “Metade das contratações foca nelas.”
Para que as recém-chegadas tenham as mesmas condições de ascensão, a Stellantis e outras empresas investem em capacitação. Um exemplo é a fabricante de ferramentas Bosch, onde as mulheres somam 30% dos quase 10 000 funcionários. A maioria é recrutada nos cursos profissionalizantes mantidos pela companhia, como a Digital Talent Academy, criada em 2015 para formar programadores. Destinada a jovens carentes, a academia já formou 300 profissionais — dos quais, 51% são mulheres. “As faculdades de engenharia e tecnologia têm menos mulheres, por isso, não adianta apenas buscar no mercado”, diz Fernando Tourinho, vice-presidente de recursos humanos da Bosch. “Para reduzir a desigualdade, é preciso criar espaços de formação profissional.” A estratégia permitiu que, no ano passado, 44% das vagas na Bosch fossem preenchidas pelo público feminino.
A fabricante de pneus Pirelli, conhecida no passado pelos calendários com mulheres nuas, pôs um pé nos novos tempos. Para promover a paridade de gênero na sua operação, fechou parceria com a startup Marias S/A, especializada no recrutamento e capacitação de mulheres. O objetivo é preencher vagas na sua rede de serviços automotivos, a Campneus. “Um ambiente de trabalho mais diverso e inclusivo é fundamental para a inovação e para o crescimento sustentável”, diz Fernanda Sandes, coordenadora de diversidade, equidade e inclusão da Pirelli.
É preciso também que a paridade alcance o topo das organizações. Segundo o IBGE, apenas 39% dos cargos de liderança são ocupados por mulheres. “É um cenário que ainda necessita de ações de aceleração”, diz Jeane Tsutsui, executiva-chefe do Grupo Fleury, onde essa proporção já alcança 70%, incluindo 45% de líderes negras. Para alcançar esses patamares, a rede de laboratórios conta com estratégias como grupos de discussão compostos por lideranças femininas e o projeto Elas na Liderança, voltado para mulheres negras. “Isso é bom para as pessoas, para o ambiente de trabalho e para nossa empresa”, diz Tsutsui. É ótimo, também, para o país. Segundo o Banco Mundial, a igualdade salarial e de oportunidades entre homens e mulheres aumenta o produto interno bruto per capita em até 20%. A arrancada feminina é valiosa para todos.
Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2024, edição nº 2916