A oscilação do câmbio e a desvalorização permanente da moeda de um país, não raro, têm como pano de fundo a desconfiança de agentes financeiros com as lideranças políticas. Exceção feita aos períodos de crescimento mundial robusto, com a valorização das commodities, países emergentes, em geral fechados e com regimes antiliberais, não vislumbram outro caminho senão o da fragilização de sua própria moeda. Na Argentina, o cenário é devastador. Na segunda 20, o presidente Alberto Fernández declarou que o país não possui mais recursos para arcar com sua dívida. Um dólar vale por lá 72 pesos — há exatos dez anos, valia 4. No entanto, é na Turquia, país com economia dinâmica e boas relações comerciais com Europa e Oriente Médio, que o efeito nefasto de governos autoritários pode ser mais bem exemplificado. A deterioração da lira turca virou caso de estudo e gerou até um fenômeno conhecido como “doença turca”. A partir de 2013, quando eclodiu uma tentativa de golpe de Estado sucedida por uma reação de tom totalitário do governo do presidente Recep Tayyip Erdogan, a cotação do dólar passou de 2 para 6,50 liras, patamar que a moeda opera atualmente. O temor é que o Brasil esteja sofrendo do mesmo mal, e, por isso, os mais abastados já buscam formas de dolarizar seus ativos para se proteger da desvalorização perene do real.
Desde a eleição de Jair Bolsonaro, o real perdeu 40% de seu valor sobre o dólar. Na última quarta-feira, a cotação da moeda americana fechou em 5,11 reais. E isso está longe de ser o pior momento, pois a relação chegou a 5,90 em meados de maio. A dificuldade de controle da pandemia de coronavírus, aliada aos sucessivos cortes da Selic, já seria suficiente para grandes oscilações, mas as inclinações do presidente Jair Bolsonaro, que flerta de vez em quando com o autoritarismo e gera desconfiança, acentuaram o processo. Tamanha volatilidade tem deixado o brasileiro de alta renda de cabelos em pé. Em busca de proteger seu patrimônio ao desnível cambial, a solução passa por realocar parte de seus investimentos no exterior. “É um processo natural que ocorre principalmente quando a economia está com baixo crescimento, com forte oscilação ou incerteza jurisdicional”, diz Orlando Assunção, professor de economia da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap).
A dolarização dos ativos, movimento de ter investimentos e patrimônios em moedas estrangeiras como dólar e euro, chegou para ficar. Segundo o Banco Central, de janeiro a maio, investidores brasileiros alocaram 3,4 bilhões de dólares em fundos no exterior, mais de 300% em relação ao mesmo período do ano passado. A ideia desse tipo de investimento não é visar à lucratividade, e sim à segurança. “Ter ativos em moeda estrangeira protege de uma perda de valor maior em grandes crises, como a atual”, diz Bruna Allemann, diretora da corretora americana Lightstone Group.
Sócio-fundador da Ello Desenvolvimento, Rafael Duarte, de 47 anos, está entre esses investidores que apostam no exterior. Há quatro anos, ele e outros três amigos enxergaram a possibilidade de comprar um terreno em Miami Beach, na Flórida, por 18 milhões de dólares. Naquela época, o valor convertido do investimento era de aproximadamente 50 milhões de reais. Hoje, eles estão vendendo o terreno para a construção de uma torre residencial de 58 andares por cerca de 50 milhões de dólares — o que pela conversão atual daria cerca de 270 milhões de reais. “No passado, a dolarização de patrimônio só era praticada pelos multimilionários, mas, com a modernização dos processos de transferência, ela vem ganhando escala e atingindo a classe média”, diz Tulio Portella, diretor da corretora de câmbio B&T.
Investir em fundos imobiliários alocados no exterior ou até mesmo adquirir terrenos e imóveis em outros países acaba sendo a forma mais usada para a diversificação de portfólio por parte do brasileiro. A alta volatilidade da moeda deve acelerar esse movimento de saída de capitais — e também de pessoas — do país, drenando a elite financeira e intelectual para o exterior. “A maior preocupação é que, além da fuga de capitais, há uma fuga de cérebros do país”, pondera o economista José Roberto Afonso, um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal, que hoje mora em Portugal. O antídoto para que a doença turca não se instale de vez por aqui, diz ele, passa pelo compromisso com o crescimento econômico e com a imagem de seriedade e respeito às instituições. Em tese, não é algo tão difícil de alcançar.
Publicado em VEJA de 29 de julho de 2020, edição nº 2697