Economista de prestígio, Paulo Guedes pisou em Brasília em janeiro de 2019 com superpoderes para conduzir uma ambiciosa agenda de reformas estruturantes que colocasse o país nos trilhos do desenvolvimento. Passados três anos e meio, o ministro da Economia entregou apenas uma delas, a reforma da Previdência, e viu as demais engavetadas ou despedaçadas em fragmentos que diluíram sua relevância. Entre choro e ranger de dentes, o resultado é que três anos e meio depois o país se encontra mergulhado em uma inflação na casa dos dois dígitos, baixíssima atividade econômica e índices sofríveis de investimento. Tanto que, nas últimas semanas, o ministro praticamente submergiu em meio a esse ambiente de desalento — primeiro por causa de uma viagem aos Estados Unidos e depois por ter contraído o coronavírus. Na última segunda, dia 9, Guedes ressurgiu e anunciou com pompa e circunstância seu empenho em virar o jogo e tirar pelo menos a reforma tributária do limbo — ou uma fração dela. “Podemos fazer uma versão mais enxuta, tributando os mais ricos e reduzindo os impostos de empresas. É isso que falta para o Brasil receber investimentos do exterior”, afirmou o ministro.
O brado do Posto Ipiranga se sustenta em uma complexa articulação em andamento nos bastidores do Congresso, parceria que envolve os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A ofensiva conta com frentes múltiplas e tem a missão hercúlea de pôr um ponto-final em divergências, quedas de braço e choques de interesse que se arrastam há meses. A mais importante para Guedes envolve o projeto de lei 2337/21, que altera regras para o imposto de renda. Aprovada na Câmara dos Deputados com 398 votos em setembro do ano passado, a inciativa foi escanteada no Senado. Para tentar aprovar ao menos alguma parte da medida, o governo aceitou fazer concessões e alterar vários de seus pontos. A ideia é focar as mudanças do IR apenas entre as pessoas jurídicas, deixando de fora a correção da tabela para pessoas físicas. Essa “reforma enxuta”, como nomeou Guedes, tem o objetivo de diminuir a carga tributária das empresas de 34% para 30% e reinstituir a cobrança dos dividendos de proprietários e acionistas, isentos desde 1996, que para o ministro constituem a categoria dos super-ricos brasileiros. Para isso, o Ministério da Economia se mostrou disposto a rever o tamanho da mordida. Em vez dos 15% que foram aprovados na Câmara, a taxação de dividendos seria de 10%. Tal tributação é um dos pontos dos quais o ministro não abre mão, sob o argumento de alinhar a carga tributária no Brasil à dos membros da OCDE, o clube dos países desenvolvidos. “O ministro aceita fazer qualquer alteração, desde que se mantenha a tributação dos dividendos, o que incide sobre os super-ricos. Entre todos os países da OCDE, essa taxação só não existe no Brasil”, argumenta um auxiliar próximo de Guedes.
Para amortecer a resistência no Senado, o ministro da Economia contou com o auxílio do presidente da Câmara. Hábil nas negociações, Lira articula a implantação do Refis, programa de parcelamento de débitos tributários, para grandes e médias empresas. Em agosto o Senado havia aprovado um projeto sobre o tema que, entretanto, acabou travado na Câmara após acordo com o governo, por ser considerado muito amplo. Uma das saídas apontadas por Lira é incluir as disposições sobre o Refis na medida provisória (MP) que trata do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Trata-se de um notório jabuti, semelhante ao que incluiu as disposições sobre o teto de gastos na PEC dos Precatórios, no fim do ano passado. Tanto que o relator designado para a MP do Fies e que pode fazer tal enxerto é o deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), que também foi o responsável pela relatoria da PEC dos Precatórios.
Em paralelo, Pacheco planeja destravar a votação de outra matéria relevante do espectro tributário nos próximos dias. Ele aguarda a volta do senador Davi Alcolumbre ao comando da Comissão de Constituição e Justiça, afastado por uma licença médica, para votar o relatório da PEC 110, de autoria do ex-deputado Luiz Carlos Hauly. A PEC, proposta em 2019, prevê a instituição do sistema de imposto sobre valor agregado dual, que substituiria até nove tributos (IPI, IOF, PIS, Pasep, Cofins, Cide-Combustíveis, salário-educação, ICMS e ISS). “A ideia é que assim que o senador Alcolumbre retorne, na próxima semana, a PEC 110 vá a plenário como parte de um conjunto de medidas que envolvem a questão tributária, onde entram a discussão do imposto de renda e do Refis”, explica um auxiliar de Pacheco. “Há o entendimento tanto do presidente da Câmara quanto do Senado de que é preciso destravar a pauta econômica no Congresso para que o país supere as dificuldades.” O problema é o tempo exíguo para toda essa operação. A MP que regulamenta a renegociação de dívidas do Fies e que pode receber o enxerto do Refis perde a validade em 1º de junho — logo, precisa ser alterada e aprovada a toque de caixa pelo plenário das duas casas. A PEC 110, uma vez aprovada na CCJ, precisa passar por dois turnos no plenário do Senado e depois, na Câmara, por comissões e mais dois turnos de votação.
Com a pressão do calendário eleitoral, o Ministério da Economia, o Senado e a Câmara têm um desafio gigantesco pela frente. Economistas e especialistas em tributação chegam até mesmo a questionar se, entre tantos problemas que a economia enfrenta, a reforma tributária é, de fato, uma prioridade. “Não vejo, sinceramente, o momento como sendo favorável. O ideal seria cuidar mais das questões conjunturais, ajudar o Banco Central no que for possível para diminuir essa pressão inflacionária e assegurar o mínimo de crescimento para a economia este ano”, avalia o ex-presidente do BC, Gustavo Loyola. Para Guedes, entretanto, desencantar a encrencada reforma tributária — ainda que bem mais modesta do que imaginou — é a última chance de tirar do papel uma pequena parte de seu grandioso plano de impulsionar o desenvolvimento do país.
Publicado em VEJA de 18 de maio de 2022, edição nº 2789