Berço dos partidos verdes, de ONGs como o Greenpeace e das primeiras campanhas contra a energia nuclear, a Europa pode ser considerada o epicentro dos movimentos ambientalistas no mundo. Dessa forma, é natural que, tanto nas ruas como nas casas legislativas e gabinetes governamentais, a preservação da natureza seja uma assunto relevante — não apenas no que diz respeito ao contexto europeu, mas também no do resto do mundo. Uma prova disso foi dada em setembro com a aprovação no Parlamento Europeu, por 453 votos a 53, de uma proposta ambiciosa para garantir que produtos importados pela União Europeia não tenham qualquer vínculo com áreas de florestas derrubadas ilegalmente e ostentem uma espécie de selo “livre de desmatamento”.
Desde a sua formulação, há quem enxergue na nova regra mecanismos legais para enquadrar exportadores inescrupulosos baseados em países como Brasil e Indonésia, hoje vistos como grandes vilões ambientais pelo Velho Mundo. Se a intenção final é esta ou não, o fato é que, na prática, a medida tem grande potencial de afetar o comércio internacional de ambos os países. Afinal, ela veda a comercialização dentro do bloco europeu de produtos advindos de áreas desmatadas em biomas pré-definidos, como a Amazônia e o cerrado. Inicialmente, a lei tinha como foco produtos como carne bovina, soja, café, cacau, óleo de palma e madeira de origem duvidosa. Mas, na etapa final de aprovação, a lista foi ampliada e passou a incluir também carnes de frango e suína, milho e borracha, entre outros produtos. Com isso, passou a abranger 80% da pauta de exportações do agronegócio brasileiro.
A legislação ainda precisa passar pela aprovação dos parlamentos de cada um 27 países-membros do bloco econômico para entrar em vigor, o que ainda garante um prazo para o Brasil se adequar às novas — e duras — regras. Mas, desde já, vai exigir atenção imediata do presidente que estiver no cargo no próximo ano, seja Jair Bolsonaro ou Luiz Inácio Lula da Silva, para não pôr em risco parte significativa da balança comercial brasileira. No ano passado, as vendas do país para a Europa somaram 36,5 bilhões de dólares. “O impacto que essa medida de fato terá no país está diretamente ligado ao posicionamento do próximo governo”, diz Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda, do Meio Ambiente e da Articulação de Ações na Amazônia Legal durante o governo Itamar Franco.
Seja qual for o resultado das urnas em 30 de outubro, a expectativa é que a diplomacia brasileira não terá vida fácil, uma vez que os temas ambientais e controles do desmatamento serão prioridade em negociações com europeus, assim como as pressões dos lobbies comerciais locais. Em 2021, o Brasil registrou a maior taxa anual de desmatamento desde 2006, revertendo décadas de esforços construídos desde a Rio-92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que marcou o primeiro compromisso assumido pelo Brasil com a responsabilidade ambiental. “A recuperação da imagem internacional do país hoje é fundamental para a construção de acordos que atendam aos interesses comerciais brasileiros”, avalia Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior entre 2007 e 2011 e estrategista de comércio exterior do Banco Ourinvest.
Um dos principais argumentos do Itamaraty contra a ofensiva europeia é que a nova regra viola as disposições multilaterais definidas pela Organização Mundial do Comércio (OMC), pois não foi tratada em conjunto. No entanto, para que tal discurso seja considerado, o Brasil precisa se livrar da imagem de destruidor da natureza. “A negociação não será fácil, mas ajuda muito se houver no governo um interlocutor que seja pró-meio ambiente”, afirma Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores. “No Brasil, as medidas de sustentabilidade foram assumidas pela iniciativa privada, mas o governo tem um papel importante a cumprir.” Com suas novas medidas, a Europa ataca em um ponto particularmente sensível: a capacidade do país de fazer negócios — e lucrar — em um dos mercados mais ricos do mundo.
Publicado em VEJA de 12 de outubro de 2022, edição nº 2810