Apaixonado por futebol, o presidente Lula gosta de usar metáforas ligadas ao esporte para reforçar uma ideia ou expressar feitos de seu governo. Um projeto bem-sucedido é chamado de “gol de placa”, por exemplo. Nos últimos dias, contudo, Lula deu uma tremenda “bola fora”. Na terça-feira 4, milhares de empresários brasileiros acordaram sob a ameaça de um confisco de bilhões de reais das contas de suas empresas. De maneira simplificada, foi isso o que fez a Medida Provisória 1227, que restringiu o uso dos créditos tributários do PIS e da Cofins, dois impostos cobrados sobre os negócios. A MP foi publicada naquele dia pelo governo federal — sem aviso prévio e com efeito imediato. Os prejuízos potenciais, de acordo com a avalanche de advogados e entidades setoriais que prontamente emergiu para combater a decisão, seriam, além da abertura de um enorme buraco no caixa das empresas, os repasses dessa perda na forma de aumento de preços para clientes e consumidores. Apresentada como “MP do Equilíbrio Fiscal” pelo governo, a medida ganhou o apelido de “MP do Fim do Mundo” tão logo caiu no domínio público, o que dá ideia do impacto desastroso que havia provocado. Se para as empresas foi um susto, para o país significou o aumento da percepção de risco nos quesitos contas públicas, inflação, taxa de juros e câmbio — ou seja, um abalo considerável na situação da economia, com sérias dúvidas sobre o poder e o destino de ninguém menos que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (leia a reportagem na pág. 28).
O barulho gerado foi alto, e a vida da MP, ainda bem, curta. Na terça-feira seguinte, 11 de junho, o presidente do Senado e também do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, anulou parte da medida provisória e a devolveu ao Executivo. As MPs são um tipo de proposição de lei prevista para ações emergenciais e que passam a valer imediatamente, de maneira temporária, sem precisar de aprovação prévia dos parlamentares. A votação e a conversão em lei acontecem depois. Por essa razão, a presidência do Congresso tem poder de impugnação quando avalia que a MP fere algum ponto da Constituição. Esse recurso, entretanto, foi usado pouquíssimas vezes. Um levantamento feito pelo escritório Cascione Advogados contou apenas outros cinco casos de devolução de MP desde a promulgação da Carta de 1988. Diante da bomba, Pacheco não teve alternativa.
A magnitude dos prejuízos que a MP de PIS/Cofins causaria às empresas, seu efeito imediato sobre preços, cotação do dólar e negócios na bolsa de valores, a forma açodada com que foi decretada, a reação ruidosa que causou, sua sobrevida efêmera e o fim excepcional que recebeu dão a dimensão da inépcia, se não da total falta de responsabilidade, de Lula e seu time no jogo econômico. A rejeição da medida provisória pelo setor produtivo e pelo Legislativo colocou toda a agenda da economia na berlinda. “Foi um recado claro de que a estratégia do governo de solucionar o problema fiscal apenas pelo aumento de receitas chegou ao limite”, diz o economista especializado em contas públicas Murilo Viana. Nas palavras do estrategista-chefe da corretora BGC Liquidez, Daniel Cunha, a agenda arrecadatória “morreria de morte morrida”, exaurida pelo tempo, mas, com o episódio da MP, “acabou morrendo de morte matada”. Tomara.
A única forma de o governo se reerguer nesse campo, fundamental para o sucesso do país, é iniciar um processo de enxugamento de custos da máquina pública. Nos quatro meses até abril, a arrecadação da União cresceu 9% ante os mesmos meses do ano passado, considerado apenas o aumento acima da inflação. Sem nenhuma contrapartida de controle nos gastos, porém — que avançaram 12% no mesmo período, ressalve-se —, poucos acreditam na promessa de zerar o déficit fiscal neste ou no próximo ano. A recente trapalhada da MP, com o ministro da Fazenda desgastado, contribui para reforçar as dúvidas, e, em decorrência, ao contrário do que o governo quer, está criada uma nova pressão para o Banco Central reduzir ou até estancar o corte da taxa de juro básica em sua reunião de 19 de junho.
A bola fora cometida com a natimorta medida provisória foi um erro crasso à luz da Constituição e das melhores práticas de legislação tributária — aliás, contraria princípios da reforma que está para ser normatizada. Os créditos de PIS/Cofins são valores liberados pela Receita referentes ao que as empresas pagam a mais de tributos, conforme compram e vendem seus insumos e produtos. É uma maneira de evitar cumulatividade na cadeia, ou seja, a cobrança de imposto sobre imposto. Atualmente, as companhias podem usar esses créditos para pagar qualquer outra taxa federal ou então receber o valor de volta da Receita em dinheiro. A devolução, porém, pode demorar mais de um ano e não tem correção. Com a MP, esses saldos passariam a ser usados apenas para abater pagamentos de PIS e Cofins. Na prática, faria sobrar crédito parado na conta das empresas, já que estas levariam mais tempo para debitá-lo totalmente, ao mesmo tempo que precisariam de dinheiro novo para pagar os outros impostos. No caso de setores que são isentos de PIS/Cofins e que têm os chamados créditos presumidos, a MP vedava a devolução em dinheiro.
De acordo com o governo, numa espécie de preconceito permanente contra a iniciativa privada, trata-se de um sistema repleto de fraudes e distorções, como é o caso de negócios que chegariam a ter “imposto negativo”, ou seja, que, além de não pagar o tributo, ainda recebem dinheiro a mais do Fisco. A realidade está longe disso. As medidas ajudam a reduzir uma carga tributária que hoje atrapalha e engessa investimentos no país. Nos cálculos da Fazenda, que até aqui só tem olhado para o lado das receitas, as mudanças permitiriam um aumento de arrecadação de 29 bilhões de reais neste ano. Mal aconselhado, Haddad garantiu que a medida não geraria custos ou inflação, mas não convenceu ninguém. “Os pagamentos de IPI vencem no dia 25, a contribuição previdenciária vence dia 20”, diz o advogado tributarista Adolpho Bergamini, colunista de VEJA. “Uma farmácia que já contava com esses créditos para pagá-los em junho, agora iria pagar com o quê?”
Medicamentos, combustíveis, produtos agrícolas e uma série de alimentos, além de todas as exportações, que são isentas dos tributos, estão entre os setores que mais teriam sofrido com a implantação da MP. “Não há aumento de alíquota ou da base de contribuintes”, diz Vanessa Canado, ex-secretária do Ministério da Economia para a reforma tributária e coordenadora do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper. “Mas seria, sem dúvida, um aumento da carga, ou então de onde viriam os 29 bilhões de reais a mais que o governo previu em receita?” De acordo com o Instituto Brasileiro do de Petróleo e Gás, a conta de créditos inutilizados para as distribuidoras de combustíveis chegaria a 10 bilhões de reais, e cobri-los significaria um aumento de até 7% na gasolina.
A reação de quem iria pagar a conta veio firme. Em declarações carregadas de revolta, o presidente da Confederação Nacional da Indústria, Ricardo Alban, afirmou que o prejuízo para o setor seria de 29 bilhões de reais apenas em 2024. “O Poder Executivo está mordendo pelas bordas”, disse, em evento recente, Rubens Ometto, sócio-controlador do grupo empresarial Cosan e um dos doadores da campanha de Lula em 2022. “Ele vai mudando as normas e as regulamentações para arrecadar mais. Do jeito que está, com o governo metendo a mão, querendo taxar tudo e com juros desse jeito, não dá.” A medida, que chegou a valer por sete dias até ser devolvida, instaurou uma crise emergencial nas empresas. “O empresário se movimentou, gastou dinheiro com honorários de advogados para se defender”, diz o economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio, Felipe Tavares Dein. “Voltar atrás não zera a conta, já deixou um efeito negativo.”
A “MP do Fim do Mundo” foi apresentada como forma de compensar o rombo de 26 bilhões de reais advindo da desoneração da folha de pagamentos, acordada entre governo e Congresso. Em 17 de maio, o ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal, deu sessenta dias para que o projeto de lei que formaliza o acordo sobre a desoneração fosse votado. Quase metade do prazo já ficou para trás e falta uma peça fundamental: de onde virão os recursos, de modo a atender à Lei de Responsabilidade Fiscal? Derrotado, Haddad diz que a Fazenda não tem “plano B” para a compensação e colocou a Receita Federal à disposição do Senado para que uma solução seja encontrada em conjunto — só agora, depois de toda a confusão causada. A bola, então, estaria com os parlamentares, incumbidos de sugerir uma ideia melhor para manter a desoneração da folha de pagamentos. A julgar pelo passado recente em matéria de responsabilidade fiscal dos congressistas, é melhor o ministério procurar também, por si só, alguma solução.
Do infortúnio, o setor privado tirou algumas importantes lições. “Ficou claro que existe uma capacidade de articulação do empresariado de dimensão até então desconhecida”, diz Ibiapaba Netto, diretor da Associação Nacional dos Exportadores de Sucos Cítricos, que acompanhou os fatos em Brasília. Verdade. Não há dúvida de que o poder de mobilização acabou sepultando a equivocada medida. Mas a questão crucial é que o episódio deu uma demonstração — para todo o mercado nacional e estrangeiro — de que a atual administração não compreende bem algumas variáveis básicas da atividade econômica, o que aumenta exponencialmente a incerteza sobre o cenário futuro. No saldo do imbróglio, ficou para o governo o alerta de que ele precisa urgentemente mudar a estratégia de jogo, tornar o meio-campo de negócios do Brasil mais seguro, adotar uma retranca nos gastos públicos e deixar o setor produtivo colocar a bola na rede. Se nada disso for feito, pode dar zebra.
Publicado em VEJA de 14 de junho de 2024, edição nº 2897