Foi num bate-papo informal com um amigo que o cientista da computação Pedro Mannato, morador de Vitória, pensou pela primeira vez em trabalhar com bois e vacas. Dono de uma empresa de softwares de gestão e, portanto, acostumado a lidar com dados precisos e acesso à informação na velocidade da luz, Mannato não se conformou ao descobrir que os pecuaristas para quem seu companheiro trabalhava só conseguiam pesar seus animais duas vezes por ano. Pior: o processo era tão rudimentar, com longas andanças do gado até a balança e a imobilização individual para a aferição, que os bois chegavam a perder 4% do peso só naquele dia. Tamanha ineficiência tirou o sono de Mannato. Ele procurou seus dois sócios e fez o desafio: como obter dados exatos e em tempo real de cada boi no pasto de uma fazenda, sem prejudicar o bicho? Assim nasceu, em 2015, a Olho do Dono. Trata-se de uma câmera 3D capaz de mensurar o peso de cada rês só pela imagem e transmitir a informação em tempo real para o celular do proprietário em qualquer lugar do mundo. Como os animais são identificados individualmente com um chip na orelha, o pecuarista ainda consegue diagnosticar doenças antes que elas se alastrem, avaliar a efetividade da dieta e precisar o melhor momento para o abate.
A empresa de Mannato é uma das 338 startups brasileiras que desenvolvem soluções voltadas especialmente para o agronegócio, as chamadas agritechs. Dados da Associação Brasileira de Startups (ABStartups) mostram que 65% delas se concentram no desenvolvimento de softwares para resolver problemas do dia a dia do produtor rural, como a gestão de dados, o gerenciamento das fazendas e a plataforma de comercialização. Mas muitas empresas apostam em soluções de biotecnologia, como o desenvolvimento de sementes, a correção do solo e o controle de pragas. As inovações tecnológicas não são importantes só porque o agronegócio brasileiro representa uma fatia monumental do PIB nacional (23%) e é o terceiro maior exportador de alimentos agrícolas do planeta. São fundamentais porque a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) prevê que em 2050 a população mundial chegará a 9,8 bilhões de pessoas, que só serão alimentadas caso a produção dobre de tamanho até lá. Como a ampliação da área dedicada à agropecuária implica um indesejável desmatamento de mata nativa, o único caminho sustentável é o aumento da produtividade promovido pela tecnologia no campo. “O produtor que se encontra disposto a entender essa revolução tecnológica agrícola é quem está dando um passo à frente”, diz Amure Pinho, presidente da ABStartups.
Naturalmente, já há interessados em lucrar com todo esse potencial. O fundo de investimento de risco SP Ventures, por exemplo, especializou-se em agritechs e é o principal investidor do setor no Brasil. Quando ele foi criado, em 2012, a ideia dos sócios era colocar dinheiro em companhias de tecnologia para a internet, bem ao estilo do Vale do Silício. Mal começaram a pesquisar o universo de startups no Brasil, no entanto, eles entenderam que as empresas voltadas para o agronegócio detinham projetos mais promissores. Dos 105 milhões de reais disponíveis nessa primeira rodada de investimentos, 80% tiveram por destino as agritechs. Uma das companhias que receberam aporte do fundo foi a Agrosmart, fundada pela paulista Mariana Vasconcelos. A startup desenvolveu um sistema que capta dados enviados por sensores de umidade na terra, por estações meteorológicas e por pluviômetros, o que permite um acompanhamento preciso da plantação e mostra ao produtor o melhor tipo de semente para cada microclima e solo, além de orientar a irrigação e a hora da colheita. E tudo funciona sem internet nem sinal de celular, uma baita vantagem nas áreas rurais, carentes de infraestrutura de telecomunicações. “A agricultura brasileira é tropical, e por isso demanda o desenvolvimento de soluções próprias para esse tipo de clima”, explica Francisco Jardim, sócio da SP Ventures.
É claro que dinheiro é fundamental para tirar as empresas do papel, mas sem a compreensão das particularidades das culturas, pragas e biomas brasileiros as startups teriam dificuldade para resolver os problemas do campo. É aí que entra a Embrapa. Fundada em 1973 justamente para desenvolver tecnologias e conhecimento técnico-científico voltados para a agricultura e a pecuária nacionais, a autarquia é a maior interessada em fazer parcerias que garantam sua aplicabilidade no mercado. Por isso ela organiza programas como o Pontes para a Inovação, uma plataforma de avaliação de novos empreendimentos no setor. Os mais bem avaliados são convidados para programas de aceleração — que ajudam as novas companhias com informação e aprimoramento de seus modelos de negócio e gestão. Muitas das 42 sedes da Embrapa também organizam pelo Brasil desafios de startups para incentivar e premiar as melhores soluções. O projeto mais robusto é o Ideas for Milk, que promove um hackathon (batizado de “vacathon”) dirigido exclusivamente para o ramo leiteiro. “Entender de forma consistente a agricultura é a chave para essas empresas avançarem, e é com isso que a gente pode ajudar”, explica Daniel Trento, gerente de inovação da Embrapa.
Uma das beneficiadas pelos programas da Embrapa é a Agribela. Graças ao acesso ao conhecimento da autarquia em controle de pragas, a startup, fundada pela engenheira-agrônoma Gabriela Silva, criou o Biodrop. Trata-se de uma cápsula biodegradável recheada de vespas que ajuda a mecanizar o controle biológico de pragas. Além de não poluente, ela pode ser lançada na lavoura por drones, o que diminui drasticamente o tempo necessário para sua aplicação. A Agribela também se ancora na produção de universidades: foi incubada na Universidade Estadual de Londrina e é uma das setenta startups parceiras da EsalqTec, incubadora da escola de agricultura da Universidade de São Paulo (USP).
Nem todas as agritechs ficam no campo, diga-se. A Ecotrace, fundada por Flavio Redi, é uma das 103 startups hospedadas pelo Cubo, um espaço de fomento ao empreendedorismo criado pelo banco Itaú e pelo fundo americano Redpoint eventures, fincado na Zona Oeste de São Paulo. Redi desenvolveu um mecanismo de rastreamento de carne bovina que consegue garantir ao consumidor a origem segura do produto e, para isso, lança mão de tecnologias como o blockchain e a internet das coisas (IoT). O primeiro consiste em um mecanismo de registro de dados, feito para as criptomoedas, que desenvolve um índice global para todas as transações que ocorrem em determinada cadeia; e o IoT é uma tecnologia que permite que objetos inanimados possam trocar dados via internet. O objetivo é garantir ao consumidor e, principalmente, aos importadores da carne brasileira a boa procedência do alimento, seja por motivos sanitários, seja por questões éticas (como a utilização de trabalho escravo ou desmatamento).
Os elos da cadeia agropecuária com potencial de evolução são, como se vê, inúmeros. E as oportunidades para empreendedores são ainda maiores. O aquecimento global traz o risco de que regiões de clima temperado, como Estados Unidos e Europa, passem a desenvolver agricultura tropical em decorrência da elevação das temperaturas do planeta. Se hoje o Brasil pode exportar os melhores produtos agrícolas, no futuro poderá também exportar as tecnologias mais disruptivas do campo. “É preciso que cada vez mais pessoas contem a história de que a gente sabe produzir tecnologia na agricultura, para que o país possa atrair capital”, reforça Mariana Vasconcelos. As startups estão fazendo sua parte.
Publicado em VEJA de 6 de fevereiro de 2019, edição nº 2620
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