Enquanto a maioria dos países abandona os combustíveis fósseis diante da catástrofe humanitária provocada pelas mudanças climáticas, o sul dos Estados Unidos continua a investir na exploração de petróleo. O norte do país, então, se rebela, e as disputas internas levam a um cenário apocalíptico. Esse é o pano de fundo do premiado romance Uma Guerra Americana, escrito pelo egípcio-canadense Omar El Akkad, que especula como será o mundo em 2074. Exageros à parte, o livro traz certa dose de verdade: apesar da pressão de ambientalistas, o “ouro negro” está longe de perder o protagonismo. Diversos anúncios feitos nas últimas semanas por algumas das líderes globais do mercado de energia reforçam tal percepção e mostram que o petróleo seguirá por bom tempo, a despeito do que se imaginava até recentemente, como grande propulsor da economia mundial.
Os gigantes do setor, de fato, não apenas colocaram um freio nos projetos de geração renovável como dobraram a aposta no combustível fóssil. O caso mais emblemático é o da americana ExxonMobil, que há poucos dias pagou 60 bilhões de dólares na compra da rival Pioneer — foi a sua maior aquisição desde 1998 e o suficiente para torná-la líder na exploração da maior bacia petrolífera dos Estados Unidos. A Exxon aproveita a escalada do preço do petróleo desde o final da pandemia. Se no auge da crise de Covid-19 o barril valia 20 dólares, agora a cotação voltou a flertar com a marca de 100 dólares. Resultado: a empresa saiu de um prejuízo de 2 bilhões de dólares em 2020 para o lucro recorde de 56 bilhões de dólares em 2022.
Não é um caso único. Recentemente, Wael Sawan, presidente mundial da britânica Shell, afirmou que a companhia reduzirá os investimentos em energias renováveis e outros negócios de baixo carbono para direcionar os recursos à exploração do combustível fóssil. Sincero, Sawan explicitou os motivos: o retorno financeiro do petróleo é maior. No Brasil, a Petrobras vai, ao menos por ora, na mesma direção. A empresa ganhou uma queda de braço com ativistas e foi autorizada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) a perfurar poços na Bacia Potiguar, no litoral do Rio Grande do Norte, uma parte da chamada Margem Equatorial, um arco ao norte da costa brasileira. “O petróleo não vai desaparecer de uma hora para outra”, disse Jean Paul Prates, presidente da Petrobras, em resposta aos questionamentos dos ambientalistas.
Longe disso, na verdade. Segundo projeção feita pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), a demanda pelo óleo continuará em expansão por ao menos duas décadas, passando dos atuais 91 milhões de barris para 106 milhões de barris diários em 2045. Para a entidade, o crescimento será impulsionado, sobretudo, por transporte rodoviário, indústria petroquímica e empresas de aviação. “O desejo é que aconteça uma transição energética o mais rápido possível, mas ele não está sendo acompanhado pela realidade”, diz David Zylbersztajn, ex-diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo e membro do conselho de administração da Vibra Energia. “O mundo não está conseguindo abrir mão dos combustíveis fósseis e isso está ocorrendo mesmo em países que lideravam o discurso da transição energética.”
Diversas razões explicam o movimento. Uma delas se deve a fatores circunstanciais. Os conflitos entre a Rússia e a Ucrânia e, agora, entre Israel e a Palestina, no Oriente Médio, região que concentra alguns dos principais produtores de petróleo no mundo, inflaram o preço da commodity. Em tese, isso forçaria uma transição para fontes renováveis de energia, mas o crescimento fraco da economia global, a inflação mais alta e o aumento dos juros pelos bancos centrais encareceram o crédito, pondo em xeque investimentos em projetos de longo prazo e de retorno incerto. Segundo a Agência Internacional de Energia, o custo global da geração de eletricidade com fontes eólica e solar subiu 20% em 2022 versus o ano anterior. Outro estudo, este feito pela consultoria Lazard, constatou que, nos Estados Unidos, as despesas com geração de energias renováveis aumentaram pela primeira vez em quinze anos. “Se continuarem demonizando o petróleo, o mundo vai conviver com escassez da oferta, o que significará preço alto”, diz Adriano Pires, sócio-fundador do Centro Brasileiro de Infraestrutura. “Os eventos recentes mostraram que não dá para fazer a transição energética abrindo mão do combustível fóssil.”
Há a percepção entre especialistas de que a Europa acelerou demais a transição energética e o que se vê agora é uma correção de rota, mesmo diante dos apelos pela descarbonização da economia. Nesse contexto, as fontes renováveis provavelmente continuarão a servir como complemento para a geração de energia, e não como substitutas definitivas dos combustíveis fósseis. Eis um dilema de difícil solução. De um lado, é preciso combater com firmeza as mudanças climáticas, sob o risco de o planeta sofrer danos irreversíveis. De outro, o petróleo se mantém como a alternativa econômica mais viável. “Como a procura cresce e jamais uma fonte energética foi substituída completamente por outra, tudo indica que a demanda por hidrocarbonetos ainda vai ser relevante por muito tempo”, diz Decio Oddone, presidente da empresa de exploração de petróleo Enauta.
Dentro de suas possibilidades, o Brasil tem apresentado boas soluções. “Quando você determina que a gasolina terá um percentual de mistura de etanol, está dando competitividade para essa fonte renovável”, afirma Marcelo Mesquita, conselheiro independente da Petrobras. Em entrevista recente, Jean Paul Prates assegurou que a empresa será “protagonista” no cenário da transição energética. “Enxergamos os desafios das reduções de emissões de CO2 como uma oportunidade de, mais uma vez, sermos pioneiros e impulsionadores dessa nova indústria nacional”, disse.
O discurso pode até ser bonito, mas está longe de representar uma virada de chave na história da empresa. Na divulgação de seu novo plano de negócios para os anos de 2024 a 2028, a estatal prevê a ampliação dos aportes na bacia da Foz do Amazonas, no Amapá — área ainda não liberada pelo Ibama —, e na Bacia Potiguar, no Rio Grande do Norte. Até 2027, serão destinados ao menos 3 bilhões de dólares para perfurar dezesseis poços. Graças aos recursos do petróleo, a Petrobras vive um momento de fartura. No terceiro trimestre, produziu o recorde de quase 4 milhões de barris de óleo equivalente por dia, número que representa um aumento de 8% em relação aos três meses anteriores. O volume produzido em setembro também foi o maior da história. Não à toa, as ações da companhia subiram cerca de 60% no ano. Se as mudanças climáticas impõem medidas urgentes, a resposta da sociedade precisa estar à altura dos monumentais desafios que existem pela frente. Ainda assim, é preciso reconhecer que o fim da dependência global do petróleo é um sonho distante.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864