Em uma cena impactante de American Factory, vencedor do Oscar de melhor documentário em 2020, operários chineses são instados a responder qual é o lema que seguem no trabalho. Em uníssono, eles bradam que “ficar parado é andar para trás”. No mundo da moda, poucas empresas, talvez nenhuma, identificam-se tanto com essa premissa quanto a varejista on-line Shein. Fundada na China em 2008 pelo discreto empresário Chris Xu e atualmente com sede em Singapura, a empresa só caminha para a frente — e em velocidade alucinante. Em poucos anos de existência, a Shein se tornou um fenômeno global, devorando a concorrência com uma estratégia que une preços baixos e lançamento frenético de coleções. Sua nova investida surpreendeu pela ousadia. Há alguns dias, a companhia protocolou um pedido de abertura de capital nos Estados Unidos, apesar de as autoridades americanas estarem de olho em seus polêmicos métodos de atuação.
A Shein diz que espera atingir um valor de mercado de 90 bilhões de dólares no IPO (oferta pública inicial de ações, na sigla em inglês). Se vingar, será o segundo maior montante para uma abertura de capital nos Estados Unidos, atrás do Alibaba, site chinês avaliado em 169 bilhões de dólares em 2014. Ainda que as entidades regulatórias impeçam que a Shein acesse o mercado de capitais local, seu poderio é inquestionável. Estima-se que a companhia tenha faturado 23 bilhões de dólares em 2022, quase o mesmo que a varejista sueca H&M, com seus 76 anos de história. A Shein é o principal aplicativo de compras em 56 países, mas seus produtos chegam a pelo menos 150 mercados.
Fazer sucesso no mundo dos negócios, claro, é louvável, mas há pontos de interrogação que pairam sobre sua trajetória. O Índice de Transparência da Moda de 2023, da associação global Fashion Revolution, atribui nota zero à rastreabilidade da cadeia de produtos da Shein, que fica atrás de 178 das 250 empresas analisadas. Entre os principais concorrentes diretos da asiática, a sueca H&M obteve a melhor pontuação, com nota 74, numa escala de zero a 100. Aliados à falta de transparência, os preços baixíssimos praticados pela Shein abrem margem para especulações sobre supostas violações trabalhistas. Enquanto um vestido da espanhola Zara custava, em média, 48 dólares no mercado americano em 2022, a concorrente asiática cobrava 16 dólares por item idêntico, segundo a plataforma Statista. Como se dá o milagre?
A Shein não tem lojas físicas nem fábricas próprias, contando apenas com uma vasta rede de produtores parceiros. Além disso, apoia-se no potencial das redes sociais para mapear tendências do mercado. Antes mesmo que seus itens de vestuário comecem a ser produzidos pela rede terceirizada, já é possível comprá-los na internet, a partir de anúncios no site da Shein. A fabricação é pautada pela chegada dos pedidos e ocorre de forma ágil, com um intervalo de dias entre a concepção das peças e seu envio aos consumidores. Com isso, a companhia não perde dinheiro mantendo um estoque de produtos. O processo é amparado pela análise de conteúdos nas redes sociais, que indicam quais peças têm potencial de fazer sucesso. “A Shein tem um modelo de negócio único baseado em produção de pequena escala”, respondeu a empresa em nota, ao ser procurada por VEJA. “A companhia produz somente um pequeno lote de 100 a 200 unidades e mede a resposta do mercado em tempo real, produzindo em maior escala os itens que têm demanda garantida.”
No Brasil, a Shein é a principal beneficiária da isenção de impostos federais para importações de até 50 dólares. “É impossível para a indústria brasileira competir com esses produtos e, se nada for feito, o problema tende a se acentuar”, diz Edmundo Lima, diretor executivo da Associação Brasileira do Varejo Têxtil (Abvtex). Há alguns dias, o vice-presidente, Geraldo Alckmin, sinalizou que as importações de mercadorias de pouco valor podem ser taxadas, mas não definiu prazos. Enquanto isso, a Shein continua conquistando fãs — e destroçando rivais — por onde passa.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2023, edição nº 2871